Em Vagabundus, espetáculo de abertura da 10ª MITsp, o moçambicano Ídio Chichava aposta no diálogo entre a dança tradicional e a contemporânea para fazer vibrar a expressão coletiva

Corpos que vibram juntos, em estado de emergência, sustentados pela voz e pelo ritmo. Eis a comunidade que vem: singularidades quaisquer em um coletivo em constante devir, como diria Agamben. Vagabundus, espetáculo da companhia moçambicana Converge+ dirigida pelo bailarino e coreógrafo Ídio Chichava, abriu a 10ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), que ocorre entre 13 e 23 de março de 2025 e ocupa diversos espaços da cidade.
A Converge+ se apresenta pela primeira vez em São Paulo, contudo esta não é a primeira vez de Chichava no Brasil. Ele já havia vindo ao país outras vezes; a primeira delas, em 2016 com a companhia francesa Kubilai Khan, à qual se integrou em 2005. Esteve em Brasília em algumas ocasiões, primeiro a convite do festival Cena Contemporânea, depois do Movimento Internacional da Dança, conduzindo oficinas e, em 2023, uma residência artística. Naquele mesmo ano, apresentou no Sesc Campinas (SP) o trabalho Matapata Cabo Delgado.
Artista reconhecido tanto na cena moçambicana quanto na internacional, tendo vivido durante mais de uma década e meia na França, Chichava conversou comigo, via Google Meet, dias antes de sua viagem, por conta de uma reportagem da Carta Capital que eu escrevia sobre os dez anos da MITsp. Como a menção na revista foi breve, mas nosso papo foi longo, publico aqui a entrevista quase na íntegra, com algumas edições.

MARIA FERNANDA VOMERO: Qual é sua relação com a dança tradicional moçambicana?
ÍDIO CHICHAVA: A dança tradicional está no começo de minha relação com o palco. Sempre foi como uma escola, uma escola de educação mais rígida, que me deu noção de movimento, relação com espaço, ideia coreográfica, apesar do contexto mais social, descontraído, naquele lugar de recreação, menos sério, no sentido de formar bailarinos profissionais, diplomados.
Mas estávamos abertos a aprender novas formas de dança. Meu primeiro contato com a dança de criação foi a oficina de Lia Rodrigues, no ano 2000. Felizmente, a Lia não veio para nos ensinar técnicas. E, sim, despertou em nós novas formas de compor a dança, de olhar o movimento como uma riqueza corporal, uma casa íntima, uma casa personificada, identitária. Ela trabalhou a partir de uma dança folclórica brasileira, o xaxado, e, por meio do xaxado, passamos a construir novas formas de movimentar-nos pelo espaço. O xaxado faz um eco, um espelho, com as danças tradicionais moçambicanas. Isso nos trouxe o questionamento de como fazemos as danças tradicionais, até onde podemos levá-las. Começou aí. Depois, conheci o [suíço] Thomas Hauert, o [venezuelano] David Zambrano etc.
Meu trabalho hoje está muito centrado na expressão tradicional moçambicana. Estou a falar de todo o conceito, de tudo o que compõe a dança tradicional: energia, ritmicidade, partilha e, sobretudo, o coletivo.
O que lhe motivou a criar Vagabundus?
O Vagabundus vem a partir do sentido de coletividade. De criar uma comunidade de dança muito mais forte, muito mais coesa, uma comunidade que é cúmplice dos elementos que participam dela. Não é só uma peça, é mais que uma peça, é essa ideia de criar comunidade. Chego a Maputo [capital de Moçambique] depois de muito tempo na França e começo a abrir portas para encontrar bailarinos e poder treinar juntos, criar juntos. Havia a necessidade de criar essa comunidade que luta por sua própria profissionalização, entender de que forma se pode constituir uma comunidade profissional de dança em Moçambique e o que é ter uma produção totalmente moçambicana que pensa a dança localmente. Então, Vagabundus é, antes de tudo, a ideia de uma comunidade que se reúne. Eu vinha de um trabalho sobre meu próprio movimento, pesquisando a presença do ator e do bailarino em palco, o ato de performance. Isso me fez chegar na ideia do corpo global.
Os cantos também são parte importante do espetáculo, não?
As companhias de dança tradicional moçambicana são todas companhias de canto e dança. Nós dançamos e cantamos. A presença, no meu entender, é total, é completa. Em minha pesquisa, conseguia encontrar dentro da respiração uns estratos de voz que sustentavam o movimento e vice-versa. Vagabundus surge do trabalho com o corpo global em presença. Como a pesquisa estava muito centrada no meu próprio corpo, quis experimentar com outros corpos, e, como as portas estavam abertas, nessa ideia de criar comunidade, depois das aulas ou de um aquecimento, eu sempre apresentava minhas ideias ao grupo para experimentarmos. Daí vieram os outros corpos a experimentar o mesmo material.

E como foi esse processo de criação conjunta?
Comecei a pesquisa no período da [pandemia de] Covid. Eu tinha na cabeça um projeto fotográfico, que virou filme e acabei chamando de Último berro – corpo em estado de emergência. O corpo no estado de emergência é esse lugar em que o corpo se encontra epiléptico e histérico. Para onde ir? Moçambique estava a sofrer ataques terroristas no norte do país, e a comunidade Makonde [que vive naquela região] era obrigada a abandonar suas culturas, suas casas, sua família. Por outro lado, existia a Covid, que nos obrigava a ficar em casa, sem nos misturar. Último berro gerou esse material, que é muito importante para Vagabundus, e que chamei de “estado tremente”: o corpo que treme num estado de emergência.
Um dos intérpretes da peça é Makonde, foi iniciado em danças Makonde, e nós, como comunidade e como forma de lhe fazer uma homenagem, dar um calor a esse bailarino do norte de Moçambique que foi obrigado a se desenraizar, acolhemos essa influência. Existe essa ligação [com as danças do povo Makonde] por causa da situação social que Moçambique vivia quando estávamos a criar a peça. Acho importante que nós, como artistas, estejamos atentos a todos eventos sociais, econômicos, políticos…
“Acho importante que nós, como artistas, estejamos atentos a todos eventos sociais, econômicos, políticos…”
A migração também é um tema em Vagabundus?
A migração foi parte do meu questionamento pessoal e, por isso, faz parte do próprio conceito de Vagabundus. A peça marca o término de minha relação com a França, como pessoa imigrante na França, marca meu retorno a Moçambique e o encontro com minha comunidade. Além do geográfico ou político, eu questionava a migração também em um sentido físico-corporal: onde comecei minha dança, minha procura. Fui para a França e, quando voltei, como era meu corpo, que experiências ele sofreu? Eu me sentia um “vagabundo” à procura de novos movimentos, de uma nova forma de estar em presença, do jogo com essa ritmicidade e essa energia que são próprias da dança tradicional. Faz parte de mim. E assumo a dança tradicional como um elemento importante para se mudar a leitura da dança global.
De que maneira?
Cabe a nós, como artistas moçambicanos, impor uma outra forma de leitura e compreensão da dança, principalmente quando falamos de dança contemporânea. A comunidade de Vagabundus é formada totalmente por corpos que são educados em Moçambique, em fazer dança tradicional desde a infância. Esse coletivo cria um vocabulário, uma nova gramática. E isso é parte da linguagem da dança global. É preciso pensar nisso: em como cada corpo é educado e de que modo podemos dialogar.

Qual é o contexto de produção das artes em Moçambique?
O contexto de produção é caótico, quase inexistente. Temos um Ministério da Educação e Cultura, que foi por um tempo Ministério da Cultura e Turismo. A dança foi sempre um elemento generalizado. Alguns anos atrás foi criada uma Licenciatura para a Dança, mas é muito recente, algo muito novo. Estamos a falar da profissionalização da dança em um país em que se tem uma companhia nacional, uma companhia que faz parte do aparelho do Estado e tem bailarinos que são reconhecidos como funcionários públicos e não como artistas profissionais. Isso cria uma confusão. Quando o ministério faz uma reforma, por exemplo, o mesmo bailarino vira um técnico numa biblioteca, sem uma formação digna. É uma falta de conhecimento do que é dança.
Nós, com a comunidade de Vagabundus, estamos a tentar a criar um modelo de produção que, se calhar, esse mesmo modelo pode ser uma miniatura para se apresentar ao Estado. Somos uma companhia de dança independente, autônoma, com uma estrutura totalmente fixa, forte, porque a cadeia está totalmente respeitada: há produção, há administração, há espaço, há os bailarinos… A ideia é institucionalizar a dança.
Criamos Vagabundus com nossos próprios meios, a partir de nossos bolsos, em conexão com os bailarinos, a própria comunidade, financiando nós próprios o transporte todos os dias e a alimentação durante o treino, a criação. O que acontece depois disso, o resultado, como a ida a São Paulo, começa a dar uma segurança financeira aos bailarinos. Os próprios familiares reconhecem o bailarino como um trabalhador.
Felizmente temos uma produtora totalmente consciente, que está em sintonia com nossa lógica, que consegue fazer reservas de uma forma eficaz para que possamos encher a caixa para as próximas produções. É uma escola para todos nós, até para o Ministério da Cultura. Isso é importante: nós criamos uma comunidade muito forte. E temos uma produtora, com um conhecimento mais científico sobre logística e várias outras coisas. Isso nos faz ser muito rebeldes e mais resistentes, ser mais incisivos naquilo que são nossos objetivos em nossa identificação como profissionais. Se meu país não me dá condições de ser artista e cidadão, o que fazer?
“Se meu país não me dá condições de ser artista e cidadão, o que fazer?”
Por fim, mas não menos importante, fale um pouquinho sobre os cantos que aparecem em Vagabundus.
Cantamos em duas línguas: no nosso dialeto moçambicano e numa combinação entre o espanhol e o português, que estão muito ligados à religião. Se tu vens a Maputo ou a qualquer lugar de Moçambique entre sexta e sábado, as cidades estão em cantos porque são dias de cerimônias e celebrações. As pessoas cantam para expressar suas tristezas e alegrias, e isso está em Vagabundus. Gosto muito de trabalhar com o tempo, esticá-lo, jogar com a monotonia e alcançar um lugar mais emocional. Para mim, antes do movimento, existe o emocional. As vozes estão muito ligadas com o interior dos próprios bailarinos. Eu lhes digo: não cantem, respirem. Respirem o que nós falamos sobre Moçambique, sobre o estado de nossa sociedade, para trazer um estado mais melancólico com esta canção, e depois criar um ambiente que considero muito global: não temos nenhuma frase, nenhum texto, só são vozes, notas, acordes, tudo isso ligado à energia. Sempre gosto de tocar o público não somente pelo gesto, mas também pela voz, para que os espectadores possam entrar na obra e fazer parte dessa viagem junto com os artistas. Costumo relembrar aos intérpretes um certo sentido de tempo, de viagem, de migração, que se relaciona à noção de princípio e fim. Vagabundus não tem “um” começo. O princípio está no instante em que o espectador sai de sua casa para assistir a uma obra de dança e, quando entra na sala, não sabe como será conduzido. Esta é uma questão muito importante no espetáculo.
Serviço:
Vagabundus
70 min. Teatro do SESI-SP | 14 e 15 de março, sexta e sábado às 20h
Programação completa da MITsp: www.mitsp.org
