Na leitura de A Autoestrada do Sul, conto do argentino Julio Cortazar (1914-1984) presente no livro Todos os Fogos o Fogo (1969), chama a atenção a epígrafe do jornalista italiano Arribo Benedetti, tirada de um artigo no jornal L’Espresso de 21/6/1964: Gli automobilisti accaldati sembrano non avere storia… Come realtà, un ingorgo automobilistico impressiona ma non ci dice gran che. Arrisco uma tradução: “Os automobilistas acalorados parecem não ter história… Como realidade um congestionamento automobilístico impressiona, mas não nos diz muita coisa”.
Cortázar se inspirou nessas linhas para criar uma narrativa sensacional: na rota a Paris pela autoestrada do sul, numa tarde quente de domingo, um engarrafamento espantoso começou a se formar. A princípio, os motoristas acreditavam que ficariam umas poucas horas ali. Mas se passavam dias e mais dias, sob um sol causticante ou um frio intenso, e os carros mal se moviam. Permaneciam praticamente lado a lado. A convivência forçada fez com que criassem núcleos para organizar o abastecimento de comida e água; parcerias surgiram entre eles e rotinas foram estabelecidas. Até que as filas de carros voltaram a andar. Quando o congestionamento se dissolveu, uma suave melancolia se abateu sobre o engenheiro do Peugeot 404, personagem que serve de eixo para Cortázar: “não era possível que isso tivesse acabado para sempre”. Os automóveis voltaram a correr e seus motoristas, a olhar para frente – exclusivamente para frente.
Pois o Grupo XIX de Teatro criou seu mais recente espetáculo, Estrada do Sul, com base no conto do argentino. Optou por reproduzir literalmente o engarrafamento numa das ruas da Vila Maria Zélia, uma antiga vila operária no bairro do Belém, onde tem sua sede desde 2004. Era uma empreitada arriscada – afinal, era preciso estabelecer uma atmosfera de congestionamento e, para isso, não bastava formar três filas de carros. Além disso, como promover a interação entre os motoristas/personagens? E onde colocar o público? O grupo tinha a seu favor a experiência advinda de uma trajetória de 12 anos, caracterizada pelo uso de espaços não-convencionais como ambientes cênicos, pelo desenvolvimento de uma linguagem própria e pela interação com o público.

O mecânico (Victor Lucena) tenta acalmar os ânimos de Vinícius (Daniel Viana) e de sua mãe Salete (Mari Nogueira). (Foto: Adriana Balsanelli)
>> Tramas paralelas
O espetáculo reúne 18 veículos. Em cada um deles, há um ou dois personagens e até três espectadores. Como na narrativa de Cortázar, os automóveis se agrupam em núcleos, uma opção acertada para evitar a dispersão, concentrar a ação dramática, propiciar uma certa cumplicidade (ou aversão) em relação aos motoristas vizinhos e desenvolver os conflitos. Deste modo, durante boa parte da peça, os espectadores têm uma visão parcial e subjetiva da história, por meio da narrativa específica de seu motorista e dos acontecimentos dentro de seu núcleo. Existem também momentos coletivos, que ocorrem fora dos automóveis e envolvem todos os condutores e passageiros. Assim como nos chamados filmes-coral (como os do estadunidense Robert Altman, com várias tramas interligadas: Nashville, Short Cuts, A Última Noite…), Estrada do Sul se constrói com base num drama coletivo, que une a todos – o congestionamento –, e no desenrolar dos dramas particulares de cada personagem. Esse talvez seja um dos pontos mais fortes da peça, mas também onde se encontra sua maior fragilidade.
No verdade, não há uma peça única e una, mas sim várias peças possíveis a cada apresentação, de acordo com o personagem/motorista que nos toca, o bloco em que nos encontramos e os espectadores com quem partilhamos o carro. Há um frescor cênico inquestionável nesse formato; e também um grande desafio para costurar a dramaturgia e coordenar a direção (que ficaram a cargo do italiano Pietro Floridia, da Compagnia del Teatro Dell’Argine, com quem o XIX já havia realizado outros projetos). Afinal, são 23 atores – os do próprio núcleo artístico do grupo, mais artistas com passagens pelas oficinas realizadas na Vila Maria Zélia. E não se trata de um elenco homogêneo.
Tive oportunidade de ficar presa nesse delicioso engarrafamento duas vezes. Na primeira, uma noite quente e de lua cheia, peguei o carro da Madalena (Daniela Scarpari, excelente), uma dona de bufê de festas, no primeiro bloco. Na segunda vez, uma noite fria e úmida, com uma insistente garoa, fui parar no último núcleo, no carro da alcoólatra Salete e de seu filho “super-herói” Vinícius (Mari Nogueira e Daniel Viana, também muito bons). Foram duas experiências bem diferentes, que me deixaram impressões diversas. O fator surpresa, arrefecido na segunda vez, e a temperatura exterior podem ter tido alguma influência. Mas baseio minha análise em fatores objetivos, é evidente: foi possível constatar que existem personagens e núcleos mais bem elaborados do que outros. Os conflitos individuais e coletivos do primeiro bloco, por exemplo, me pareceram muito mais interessantes e bem defendidos do que os do último. Há atores que se saem muitíssimo bem ao aliar coloquialidade e precisão em suas atuações (a exemplo de meus “motoristas”, Daniela, Mari e Daniel). Outros dão a impressão de apenas estarem disfarçados sob o figurino ou o nome de seus personagens; não me convenceram. Não sei se convenceram seus passageiros.
>> O fator tempo
Aí está um dos grandes desafios desse espetáculo. Um dos pilares de Estrada do Sul é o fator tempo. A montagem joga com o tempo, distendendo-o propositalmente. Não há saída: os carros não andarão tão cedo. É preciso gerar a sensação de tédio – por causa do congestionamento – sem que a peça se torne entediante. O tédio é uma justificativa abstrata e “inventada” para impulsionar determinadas ações individuais ou coletivas. Se o passageiro/espectador começa a se entediar de verdade, a achar que a encenação se arrasta, é porque algo ali no carro não está funcionando bem. O ator não consegue criar empatia, não sabe contar bem sua história, não estabelece jogo com seus passageiros e/ou motoristas vizinhos, sai do ritmo etc.
Dei sorte: fiquei bastante envolvida com as histórias tanto de Madalena quanto de Salete e seu filho. A carismática Madalena me fez pensar em certos dilemas éticos enquanto Salete e Vinícius me levaram a refletir sobre a dimensão dos laços afetivos. Em determinado momento, depois de uma discussão entre motoristas, Salete se mostrava consternada, abatida. Instintivamente, pus minha mão em seu ombro e voltamos para o carro. “Esqueci” que estávamos numa peça; essa sensação foi ótima.
Estrada do Sul tem momentos potentes, lindos, especialmente quando o registro se torna onírico. Gosto muito do personagem do escritor (o ótimo Ronaldo Serruya) e de suas participações, tanto no discurso feito na copa da árvore, logo após a cerimônia – aliás, que texto lindo aquele! – quanto no confronto com o militar (Rafael Procópio, igualmente muito bom). A cena da pretensa atriz (Juliana Sanches, divertida) e do enterro, conduzido pela freira (Priscila Jácomo), também são interessantes e contribuem para dar ritmo à encenação.

O militar interpretado pelo ator Rafael Procópio assume o comando da situação: toque de recolher e punição aos desobedientes. (Foto: Adriana Balsanelli)
>> Utopia ou distopia?
Se no conto de Cortázar há uma certa utopia no registro daquela aquela convivência forçada, uma leve esperança de que é possível, sim, criar um ambiente solidário entre desconhecidos, a distopia se faz presente na encenação do Grupo XIX. No início, o discurso coletivo parece funcionar, encontra adesões e alcança alguns resultados. Em seguida, porém, as diferenças começam a se mostrar gritantes, o individualismo vem à tona, interesses mesquinhos se sobrepõem às necessidades do grupo. Uma solução totalitária surge de forma autoritária e obtém respaldo. Paira o descrédito no outro, o cansaço emocional, uma certa desilusão. Há os que se mostram corruptíveis, os que são corruptores (em sentido amplo). Sinal dos tempos?
Contudo, a alteridade abre pequenas frestas – ao menos é o que mostra o interessante personagem de Lígia Yamaguti no primeiro bloco (não há equivalente no terceiro núcleo; sua delicada narrativa escapa aos passageiros dos últimos carros). Fiquei emocionada quando recebi o passarinho de origami. Lembrei-me de Frida Khalo: Pies para que los quiero si tengo alas para volar? Há momentos, muitos, em que é preciso sair do carro (do microcosmo, do sofá) e pisar nas ruas, e olhar para os lados, e repartir mantimentos e sentimentos, e construir conjuntamente alternativas e novas estradas, mas não de asfalto.
Se o Grupo XIX não existisse, seria preciso inventá-lo. Suas montagens são sempre estimulantes. Aliás, trata-se de uma companhia artística que, como poucas, sabe transformar imperfeições e fragilidades em virtudes. O espetáculo pode ter seus pontos fracos, mas são superados com ampla vantagem pelos fortes. Estrada do Sul é uma experiência teatral fascinante; aponta caminhos para arte (mesmo que os carros mal saiam do lugar) e traz reflexões sobre a vida, a coletividade, o espaço urbano. A humanidade resiste, apesar da distopia; a utopia resiste, apesar do descrédito; e a Vila Maria Zélia resiste, apesar da especulação imobiliária, “da força da grana que ergue e destrói coisas belas” e da segregação urbana galopante. A Vila Maria Zélia resiste porque resistem seus moradores, porque o Grupo XIX também resiste e porque, apesar dos pesares todos e em alguma medida, tenemos alas para volar.*
*deixemos o carro em casa. Apropriemo-nos de nossa cidade.

Cena de “Estrada do Sul”: a convivência forçada, por causa do interminável engarrafamento, traz à tona divergências e troca de acusações. (Foto: Adriana Balsanelli)
(O espetáculo ficou em cartaz durante o mês de setembro, mas tem reestreia prometida para novembro.)