Entre o sopro das mudanças e a agonia das certezas

Ao sair da sessão de Senhorita Júlia, com o Grupo Tapa, me lembrei de dois filmes a que assisti recentemente: O Amante da Rainha, candidato dinamarquês ao Oscar e que esteve em cartaz em São Paulo até bem pouco tempo atrás, e Therese D., longa francês que chegará aos cinemas na primeira quinzena do mês de abril.

*Augusto Zacchi, Anna Cecília Junqueira e Paloma Gagliasso em cena de "Senhorita Júlia", do sueco Strindberg (crédito: divulgação).

O primeiro, dirigido por Nikolaj Arcel, conta a história do casamento da inglesa Caroline Matilde com o rei Christian VII, da Dinamarca, um jovem emocionalmente instável e histriônico, e o posterior envolvimento da rainha com o alemão Johann Struensee, médico do monarca e seu conselheiro. Mais que um drama amoroso, esse longa-metragem retrata as mudanças políticas em processo na Europa do século 18, quando as ideias iluministas nascidas na França põem em xeque o Estado absolutista e o ilimitado poder da Igreja sobre as instituições sociais. O iluminista Johann apresenta textos de Rousseau, Diderot e Voltaire à jovem rainha, antes resignada e infeliz com seu matrimônio insatisfatório e com o ranço da retrógrada corte à qual está obrigatoriamente ligada. E graças à amizade com o rei, também exerce influência sobre este, perpetrando mudanças fundamentais no fazer político.

O segundo filme, de Claude Miller, acompanha a trajetória da jovem Thérese Desqueyroux na França da década de 1920. Com a cabeça cheia de ideias e pensamentos muito diversos em relação à sociedade provinciana da época, como ela mesma comenta à amiga de infância, aceita se casar com um rapaz de família rica e reconhecida na região para, quem sabe, conseguir acalmar suas inquietações mais íntimas e sua rebeldia. As mudanças sociais e comportamentais que já agitavam Paris ainda não haviam chegado ao campo, cuja organização social ainda se mantinha atada à família, à propriedade e à tradição. Thérese se sentia oprimida por esse contexto. O longa é baseado na obra homônima do Nobel francês François Mauriac (1927), que, por sua vez, se inspirou numa notícia sobre uma mulher suspeita de tentar envenenar seu marido absolvida pela justiça.

Papeis sociais confusos –

Senhorita Júlia é uma peça de 1887, escrita pelo dramaturgo sueco August Strindberg (1849-1912), com tom marcadamente naturalista. Mas Strindberg, nesse texto, antecipa o que viria a ser considerado o teatro moderno e já deixa entrever elementos que desenvolverá em peças posteriores (aspectos oníricos e inconscientes, por exemplo). Coloca em cena uma jovem aristocrata, filha de um importante proprietário de terras, num perigoso jogo de sedução com um serviçal da casa. A cozinheira, “quase noiva” do criado, a tudo observa. Strindberg foi considerado antiquado e machista, um homem com traços de misoginia. Seu incômodo com a emancipação feminina é evidente, mas talvez esteja dentro de um contexto maior: um certo pavor com a dissolução das instituições e das certezas. Onde se agarrar quando tudo ruía e seu projeto artístico não encontrava vazão? (A peça A Noite das Tríbades, também montada pelo Tapa em 2012, com texto do sueco Olov Enquist e direção de Malú Bazan, atriz do grupo, retratou bem esse Strindberg emocional e ideologicamente perdido, que se apoiava na arrogância e na rudeza para se defender das mudanças – “personificadas” nas mulheres ao seu redor).

Júlia está longe de ser como a rainha Caroline Matilde, que tem como mentor e amante um homem de ideias progressistas e convicções liberais. Tampouco desfruta da lucidez disfarçada de “cabeça cheia de ideias e pensamentos” de uma Therese D., que tateia o reconhecimento dos próprios desejos e da própria emancipação. Júlia é uma garota confusa, marcada por um histórico familiar de ressentimentos e represálias (mãe transgressora, pai conservador). Júlia não compreende bem, mas quer desafiar os papeis sociais vigentes, que estar acima deles, longe de certezas. Júlia é pura dúvida e desejo; falta-lhe maturidade para conferir consistência a seus atos e assumir suas consequências. Sucumbe, então, às próprias fragilidades.

Sobriedade e controle cênico –

A montagem que Eduardo Tolentino faz da peça é sóbria, austera. Em muitos momentos, o trabalho de luz me lembrou um chiaroscuro do Caravaggio. As encenações do Tapa se caracterizam por marcações muito precisas, gestos trabalhados e com intenção clara, vozes límpidas e projetadas, em suma, muito controle cênico. Nada é por acaso e, para usar um clichê, não há ponto sem nó. Em geral, isso funciona, às vezes, não, pois engessa tanto a polifonia do texto quanto a interpretação dos atores. Em Senhorita Júlia, felizmente isso não aconteceu. Todo esse controle cênico serve à narrativa. Parece que todos os sentimentos latentes e as pulsões estão reprimidos como numa represa prestes a se romper.

Os atores interpretam seus personagens com competência – Anna Cecília Junqueira trabalha bem as nuances e os humores de Júlia, Augusto Zacchi faz um criado arrogante, porém de fraquezas evidentes, e Paloma Gagliasso preenche a cozinheira Cristina com mistério e alguma insegurança. Gosto muito da presença de Paloma em cena, ora como sombra, ora como fiel da balança, uma empregada que tinha em Júlia um modelo, uma inspiração, a “sua senhora” e agora vê, como os demais, virarem frangalhos as referências que lhe organizavam as certezas.

Corra, pois a peça termina neste fim de semana. A temporada vai até o domingo de Páscoa, 31 de março.

Até 31/3, ter. a qui. e sáb. 21h; sex. 21h30, dom. 19h. Viga Espaço Cênico: R. Capote Valente, 1323, metrô Sumaré, tel.: 3801-1843. Gênero: drama. Duração: 70 min. Classificação: 14 anos. Ingressos: R$ 40,00. Onde comprar: na bilheteria (abre duas horas antes do início do espetáculo).