Já faz alguns dias que estou para escrever sobre Homem Não Entra, espetáculo mais recente da Cia. Pessoal do Faroeste. Tenho cada vez mais certeza que os méritos dessa peça ultrapassam a performance apresentada na sede da companhia, na Rua do Triunfo, e alcançam um debate fundamental sobre a cidade e seus habitantes que urge ser ampliado e disseminado. Que processos – autoritários ou democráticos – estão em curso hoje em dia? Quais seriam os atuais duelos da São Paulo contemporânea? E os personagens desses “acertos de contas”?
A peça, escrita pelo jornalista Rodrigo Pereira, pesquisador e inveterado fã de faroestes, e por Paulo Faria, também diretor da montagem, se passa em 30 de dezembro de 1953, no dia do polêmico decreto proposto pelo então prefeito Jânio Quadros e promulgado pelo governador Lucas Garcez, que visava acabar com a chamada Zona Livre, área de prostituição no Bom Retiro. As prostitutas expulsas dali migram para a região no entorno da Estação da Luz, que ficaria conhecida por nomes como Quadrilátero do Pecado, Boca do Lixo e, mais recentemente, Cracolândia. A prostituta Brigitte, nascida Brígida, interpretada por Mel Lisboa, desponta como liderança. Por questões pessoais, mata uma cafetina e seu amante, um poderoso fazendeiro. Assume o comando do estabelecimento da mulher assassinada e, em provocação ao xerife Mardock (Roberto Leite), o mantenedor da ordem e da segurança daqueles bairros, não cancela a festa de ano-novo programada para o local. O corrupto e ardiloso Mardock teme que o evento se torne um ponto de encontro da bandidagem. E tem outra preocupação para aquela noite: a chegada do pistoleiro Django (José Roberto Jardim), com quem o xerife tem uma disputa pendente.
Sede de vingança
Um dos grandes trunfos da peça foi justamente a opção pelo faroeste, nada comum no teatro. Apesar dos riscos de encenar um western no palco, a montagem tem muitos acertos. Os principais elementos do gênero estão presentes: o sentimento de vingança, que impulsiona e opõe os personagens; um acerto de contas com o passado, baseado em códigos de honra ou de justiça; duelos ambientados num lugar que gradativamente se torna “civilizado” e o contraste proposital entre os símbolos do progresso (trem, imprensa…) e o ambiente sem lei das cidades nascentes (os saloons, os bordéis, a marginalidade), para citar alguns. Nos faroestes cinematográficos, é bastante comum o uso do grande plano geral, preenchendo a telona com paisagens poeirentas e inóspitas, e do plano americano (que flagra os personagens dos joelhos para cima). Faço essa breve menção para comentar a inteligente escolha por um cenário horizontal comprido, que começa no bar da entrada da sede e segue até a saleta de bilhar. O palco, em três planos, explora enquadramentos diferenciados dos personagens e se torna locação interna ou externa de acordo com a cena. E em nenhum momento esquecemos que estamos mesmo na Rua do Triunfo, na cidade de São Paulo, nessa metrópole repleta de lugares socialmente “interditos”. No ápice do espetáculo, quando finalmente Brigitte, Mardock e Django duelam, temos ali, no Largo General Osório, tendo a Sala São Paulo atrás (antigo prédio da Estrada de Ferro Sorocabana), nosso grande plano geral.
Outro trunfo da peça é a presença do coro, que funciona muito bem. O bando de homens maus é mais que um punhado de coadjuvantes: compõe as cenas e dá fluxo à narrativa. Achei o início da peça magistral, com aquela passagem “a galope” dos atores – que serve de metáfora também aos trens que chegavam às estações ferroviárias das redondezas e traziam tanto a riqueza quanto forasteiros com sede de vingança.
Movimentos precisos
Se há uma diferença crucial, contudo, entre os clássicos do faroeste e a peça, essa está na verborragia da segunda. Os personagens de western costumam ser figuras de poucas palavras e olhares contundentes, que falam o estritamente necessário e não gastam paciência nem energia com discursos extensos. Homem Não Entra, por sua vez, é um espetáculo de muitos diálogos e falas longas. Isso se explica porque o texto, além de comportar parte das ações passadas (os personagens contam por que agem como agem no momento presente), desenha todo o contexto daquela São Paulo em progresso. Ficamos sabendo da 2ª Bienal de Arte da cidade, do sucesso do filme O Cangaceiro, de Lima Barreto, produzido pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz e exibido em Cannes, da ascensão de espaços urbanos ainda novos, como o Parque do Ibirapuera e a Avenida Paulista. Embora a trama se beneficie desse contexto, há diálogos que soam forçados, didáticos demais. Em geral, o personagem do jornalista Romã (Beto Magnani) é o encarregado de introduzir tais assuntos. Aliás, Romã é uma figura interessante na trama; esperto e escorregadio, tenta tirar vantagem de sua relação tanto com Mardock quanto com Brigitte, aproveitando seu ar sedutor e sabichão.
Para dar conta do texto a ser dito, o diretor Paulo Faria optou por cenas mais estáticas, com o mínimo de movimentos e precisão de gestos. Em geral, os atores se saem muito bem, mas quem se destaca é Mel Lisboa, que nos oferece uma Brigitte vigorosa e contundente. Mais que uma prostituta sedutora, porém rancorosa e vingativa, Brigitte é uma mulher bastante consciente de seu papel na sociedade. Não se enxerga como vítima de um trauma sexual ou de um sistema nebuloso; identifica com muita clareza os jogos de poder que a envolvem e não se nega a participar deles. Homem não entra em sua vida – talvez Django, se mostrar que merece –, homem não entra em seus negócios. O protagonismo de Brigitte, muito mais que o de Django, me parece outro acerto da peça. Por outro lado, a outra personagem feminina, Ramirez, esposa de Mardock, não me convence. Embora a atriz Thaís Aguiar lhe empreste graça e humor, a pobre Ramirez me parece dispensável, um tanto clichê. Faltou mencionar o divertido Hadur, interpretado por Marcelo Szykmann, responsável pelas melhores tiradas da peça. As passagens coreografadas, em que há duelos e tiroteios, e a trilha de Felipe Roseno com sonoplastia de Jorge Peña (fiel à atmosfera de faroeste) merecem aplausos.

* As motivações da prostituta Brigitte vão além de um mero acerto de contas com seu passado. Crédito: Rodrigo Reis.
O lado sombrio da cidade
Com 15 anos de trajetória e sede na Rua do Triunfo, a Cia. Pessoal do Faroeste parte de um fato histórico para montar um “faroeste trágico”, que nos faz pensar muito mais sobre a São Paulo do século 21 do que necessariamente sobre a “cidade em processo civilizatório” da década de 1950. Ainda mantemos essa expectativa de que a “ordem” e a “segurança” venham nos salvar do ambiente sem lei que impera na megalópole. Uma certa iniciativa de “limpeza social”, apoiada nas estatísticas sobre a violência, tem estado em curso já há bastante tempo. Certos grupos, embora “indesejáveis” a uns quantos olhos, continuam ocupando calçadas, esquinas, imóveis abandonados. Andamos todos blindados, escondidos atrás de grades e muros. Não nego que realmente enfrentamos um problema concreto de criminalidade, mas questiono a manipulação de nossa sensação de insegurança com vistas a determinados fins (nada nobres). Além disso, o espaço urbano coletivo tem sido cada vez mais desapropriado em nome de interesses privados – projetos de revitalização que têm na verticalização sua bandeira visam beneficiar a quem, exatamente?
Fragmentar a cidade em “ambientes saudáveis e familiares” versus “redutos de marginalidade” é a solução? Tampouco consigo entender o descaso governamental que paira sobre áreas históricas ou tradicionais de São Paulo, totalmente abandonadas, condenadas à decadência e à degradação completas até, subitamente, se transformarem em zonas de interesse “social” e especulação imobiliária. Por isso, o clamor de Brigitte – em determinado momento do espetáculo – ecoa de modo dolorido e agudo não só pelas fachadas descascadas e sujas da Cracolândia e da região da Luz, mas por toda a cidade. Acorda os cidadãos sonâmbulos, sacudindo-lhes a indiferença. Dá voz a quem já desaprendeu a fala, o protesto, o pedido de socorro. E chama a atenção para nossa responsabilidade diante do outro e da coletividade.
Responsabilidade diante do outro
Me recordo de uma conferência da filósofa estadunidense Judith Butler, Vida Precária e as Condições de Coabitação, em que ela falava justamente sobre o compromisso ético de preservar não só a própria vida (no sentido mais amplo do termo “preservar) mas também a vida do outro, com a consciência de que a convivência com os demais habitantes do planeta não é uma escolha. Vivemos em inevitável relação de interdependência; e essa proximidade obrigatória com o outro (mesmo indesejável) expõe a precariedade de nossa condição social. Butler toma como exemplo o conflito Israel e Palestina, traça paralelos e aponta contradições entre o pensamento de dois filósofos judeus, o lituano Emmanuel Levinas (1906-1995) e a alemã Hannah Arendt (1906-1975), e conclui: “Se tentamos entender em termos concretos o que significa nos comprometermos em preservar a existência do outro, seremos invariavelmente confrontados com as condições físicas da vida; um compromisso, então, não só com a persistência corporal do outro, mas com todos os fatores ambientais que tornam sua vida suportável”.
Poderia ser uma tragédia grega. Ou uma obra de Bertold Brecht. Neste nosso caso, é um faroeste – com todas suas instigantes questões sobre progresso e civilização, barbárie e justiça (ainda que sejam códigos privados de justiça). O fato é que a peça traz à tona questões escamoteadas sobre o espaço urbano – muito pertinentes para se discutir o conceito de “desenvolvimento” em voga. Por isso, não me parece nada irrelevante que tenhamos um faroeste em plena Cracolândia. Obrigada, Paulo Faria, Rodrigo Pereira & elenco.
HOMEM NÃO ENTRA. Até 18/8, sáb. 23h e dom. 17h. Sede Luz do Faroeste: Rua do Triunfo, 305, Metrô Luz, tel. 3362-8883. Gênero: Faroeste. Duração: 60 min. Classificação: 18 anos. Ingressos: pague quanto puder (antecipados ou reserva: R$ 40).

* Brigitte (Mel Lisboa), apoiada por Hadur (Marcelo Szykmann), à esq., e Django (José Roberto Jardim), confronta Mardock (Roberto Leite). Ramirez (Thaís Aguiar) observa a cena, ao fundo. Crédito: Rodrigo Reis.