Imagens memoráveis

*Em que crê Dom Manuel, aquele que não crê mas tem responsabilidade sobre a fé dos demais? Com o ator Maurício Santana. (Crédito: Marco Aurélio Olimpio)

Em trecho de um dos melhores livros que devorei ao longo de 2012, Os Enamoramentos, do espanhol Javier Marías, o charmoso Díaz-Varela comenta com a suspirante protagonista María Dolz a narrativa de uma obra de Honoré Balzac, O Coronel Chabert (1892).

“Bom, mas o que aconteceu com o coronel?”,  pergunta María.

“O que aconteceu é o de menos”, afirma Díaz-Varela. “É um romance, e o que acontece neles não tem importância, a gente esquece, uma vez terminados. O interessante são as possibilidades e ideias que nos inoculam e trazem através de seus casos imaginários, nós os guardamos com mais nitidez do que os acontecimentos reais e os levamos mais a sério” (p. 139).

Creio que, com o teatro, acontece algo parecido. Muitas vezes, tempos depois de termos assistido a uma peça, não lembramos exatamente dos diálogos nem da sequência correta das cenas. Mas a emoção experimentada em determinados momentos, e condensada em umas quantas passagens que recordamos com clareza, se torna duradoura. Afinal, os espetáculos marcantes são aqueles que, além de nos “inocular possibilidades e ideias” que reverberam durante dias, semanas ou meses, nos deixam imagens inesquecíveis.

Para mim, São Manuel Bueno, Mártir, do Grupo Sobrevento, é um desses. Aliás, uma das peças mais bonitas a que assisti nesses três meses de 2013. E tem apenas mais quatro dias de apresentações – de 28 de março, quinta-feira, ao domingo de Páscoa, dia 31. A tocante história do santo sem fé, que sublima a própria dúvida e descrença para manter vivas esperança e crença alheias, encontra a encenação perfeita por meio do teatro de bonecos, manipulados pelos excelentes Maurício Santana, Sandra Vargas e Luiz André Cherubini.

Talvez, fosse outra a montagem, com tons realistas e direção mais sisuda, com personagens de carne e osso num palco em vez dos bonecos de madeira esculpidos pelo artesão Mandi, o texto do filósofo espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) soaria datado. Afinal, em tempos tão voláteis, de amor líquido, quem ainda fala de fé? Quem assume as próprias dúvidas em vez de proclamar de modo eloquente as próprias certezas?

*Os belos bonecos confeccionados pelo escultor Mandi e usados no espetáculo do Grupo Sobrevento. (Crédito: Marco Aurélio Olímpio)

Mistérios e contradição

Dom Manuel, o homem que não crê na vida eterna, que carrega o fardo de ser inspiração para todo um povoado justamente por aquilo que mais lhe escapa, é a síntese do ser humano em seu íntimo, no permanente confronto com as próprias inseguranças e contradições diante do mistério intrínseco à vida. Pouco sabemos sobre as entrelinhas da existência, apesar de todo o nosso achismo. Assim, só nos resta amar – e viver. A generosidade de Dom Manuel é ser esteio para a comunidade quando, e sobretudo, lhe faltam as forças para acreditar.

Assisti ao espetáculo logo na estreia (além de um ensaio) e me lembro, com nitidez, de muitas das cenas: a da festa junina,  a do encontro entre o padre e o pai de um rapaz suicida, a do embate entre Ângela, a narradora da história, e dom Manuel… Linda também a passagem da chegada ao pueblo da trupe do teatro de mamulengos e o que se desenrola a seguir. Igualmente se mantém em minha memória a bela imagem da conversão do cético Lázaro, irmão de Ângela. Os bonecos maciços, na manipulação precisa dos três atores – presentes e inteiros em cena –, conferem poesia e plasticidade ao espetáculo.  São Manuel Bueno, Mártir revela-se como artesania teatral da mais alta qualidade.

PS.: A peça dialoga com outras obras – aquelas que me vêm imediatamente à cabeça são o livro Em que creem os que não creem (1999), com as correspondências entre dois italianos, o escritor Umberto Eco e o arcebispo Carlo Maria Martini, sobre fé, religião e ética, e os filmes franceses Diário de um Padre (1951), de Robert Bresson, e mais tangencialmente Homens e Deuses (2010), de  Xavier Beauvois.

Até 31/3, qui. e sex. 21h; sáb. e dom. 20h; sessões extras nos dias 23, 24, 30 e 31/3, sáb. e dom. 18h. Espaço Sobrevento: R. Coronel Albino Bairão, 42, a duas quadras do Metrô Bresser-Mooca, tel. 3399-3589. Gênero: drama. Duração: 70 min. Classificação: 16 anos. Grátis.