
Tiago Rodrigues, Paula Diogo e Bernardo de Almeida em cena de “Se uma Janela se Abrisse”, produção da companhia portuguesa Mundo Perfeito. (Foto: Magda Bizarro)
Tiago Rodrigues, diretor artístico e ator da companhia portuguesa Mundo Perfeito, afirmou, em conversa com o público depois da última apresentação de Se uma Janela se Abrisse no Sesc Belenzinho (dia 4/8), que discorda da frase “uma imagem vale mais que mil palavras”, embora reconheça tanto o esvaziamento das palavras e dos discursos na atualidade quanto o poder das imagens – despejadas em fluxo contínuo – em captar e modular a atenção dos espectadores. Resolver tratar dessas questões no teatro e, para isso, escolheu o telejornal como objeto de desconstrução e releitura. Os noticiários televisivos possibilitam reflexões inúmeras; destaco algumas que aparecem na montagem: a experiência visual e o condicionamento ao que se vê, a manipulação das imagens, o tratamento jornalístico dado à realidade, a linguagem como mediadora entre os fatos e a compreensão desses mesmos fatos, a elaboração simbólica individual de um evento, as impossibilidades da fala para dar conta da vida etc. A própria elaboração teatral tem seu embate específico: atores versus projeção. O resultado é um espetáculo inteligente e provocador.
(Esse post continua a análise iniciada em As instigantes maravilhas do Mundo Perfeito.)
SE UMA JANELA SE ABRISSE
E começa o telejornal. Na projeção, vemos o âncora português João Adelino Faria dando início a mais um noticiário. Mas… opa? As tradicionais, pasteurizadas e insossas “novidades diárias” dão lugar à surpreendente informação de que a fala, subitamente, se tornou insuficiente diante da existência. Não consegue mais dar conta dos sentimentos, dos sentidos, da sensações. Da vida, em suma. Como? A primeira reportagem relata as repercussões do trágico acidente com o voo da Air France, que desapareceu no Oceano Atlântico. Um fenômeno acomete familiares e amigos das vítimas e gradativamente “contamina” os demais: as pessoas já não conseguem pronunciar certas palavras relacionadas à tragédia – “céu” e “mar”, por exemplo. Algo parecido ocorre com os habitantes da Ilha da Madeira, como consequência das chuvas torrenciais e das inundações que afetaram o lugar.
O mais curioso é que o telejornal, desde o início, é dublado pelos quatro atores que estão no palco – Tiago Rodrigues, Paula Diogo, Bernardo de Almeida e Cláudia Gaiolas – acompanhados pelo DJ e sonoplasta Alexandre Talhinhas. Dublado em perfeita sincronia, vale ressaltar. Vemos, nas projeções, o âncora, os repórteres e os entrevistados e os escutamos ao vivo, com perfeita naturalidade. Temos, portanto, uma dublagem ao vivo tratando da insuficiência da linguagem, da cisão entre significante (o aspecto palpável) e o significado (o aspecto conceitual) da palavra como signo. É preciso desdizer tudo para recuperar a essência da comunicação; do diálogo de um indivíduo consigo mesmo, de um indivíduo com outro indivíduo, com o mundo e com a coletividade. É preciso recriar o léxico. Um cartaz, erguido por uma bela moça, exibe a frase: “pago mil euros por um beijo”. Ninguém a beija. Estamos impotentes.
A fala viciada dos telejornais também se esgotou; é preciso que seja recriada por outrem. As notícias desimportantes sobre política, economia, meio ambiente, esportes, trânsito…, o toujours la même chose em que se tornou o noticiário televisivo (mostra tudo para dizer nada), esse recorte inútil da realidade (sobras requentadas de qualquer outro dia anterior), tudo isso dá lugar aos destaques que realmente importam: a humanidade da humanidade. São aquelas histórias mínimas – lembro, aqui, bem rapidamente do singelo filme do argentino Carlos Sorín, Histórias Mínimas (2002) –, aqueles relatos diminutos das pessoas comuns que ganham a tela e que emergem na dublagem. Se ainda nos restam o ópio e o vício da fala, que falemos do que realmente importa, ora pois.

Os atores no palco dublam o telejornal projetado em “Se uma Janela se Abrisse”, espetáculo da cia. portuguesa Mundo Perfeito (Foto: reprodução)
E, de repente, a dessincronia. Como se não bastasse a insuficiência do vocabulário disponível, a aridez da fala como instrumento de comunicação, os indivíduos começam a sentir que seus lábios se mexem em velocidade maior do que saem as frases. Ou seja, as frases começam a escassear, como conta uma outra reportagem do telejornal. Não há mais conexão entre o movimento labial e os dizeres. A própria dublagem sofre com isso. Tudo sai do lugar. E é então que o inevitável acontece: o âncora João Adelino Faria se cala. Cala-se porque não vale a pena dizer mais nada. Cala-se porque não cabe mais nas palavras. Longos, longuíssimos minutos de silêncio. Algo jamais visto na televisão: um âncora que simplesmente se cala. Mas seus pensamentos continuam vivos, audíveis e fluentes. E são esses pensamentos que escutamos por meio dos atores. No rosto de João, vemos todo um filme. Trata-se de um momento muito bonito (o jornalista concordou em ser filmado em sua bancada, em silêncio ativo, recebendo vez ou outra mensagens ou provocações de Tiago pelo ponto). O calar também é um modo de dizer algo. Ah, esse silêncio túrgido e fazedor de novos mundos…
Se uma Janela se Abrisse empresta seu título de um verso de Alberto Caeiro, que dizia o que Fernando Pessoa-ele mesmo talvez não ousasse afirmar, “há só uma janela fechada e todo o mundo lá fora,/ E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse/ Que nunca é o que se vê quando se abre a janela”. Trata-se de um espetáculo com várias camadas de interpretação, rico em sentidos e reflexões. Em certo momento – o do comercial –, iogurtes são distribuídos para o público. Cada qual tem uma palavra associada – os atores anunciam a palavra e o espectador que quisesse aquele iogurte levantava o braço: “bonito”, “fashion”, “honesto”, “passional”, “inteligente”, “corrupto”, “20 centavos”, “infinito”… Eu peguei dois: “popular” e “complicado”. Por que esses dois? Que identificação tive com esses termos? Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia, meu bem. Eram meros iogurtes nominados ou significavam algo mais? Food for thought, literal e metaforicamente…
Meu agradecimento carinhoso e caloroso aos atores da Mundo Perfeito por esse espetáculo teatral tão estimulante, tanto sensorial quanto intelectualmente. Vida longa a essa companhia inquieta e cheia de picardia. E que voltem muitas outras vezes a São Paulo, ao Brasil. Beijos a todos – e nem precisam me pagar os mil euros.
Aos que não assistiram, dá para ter uma ideia do espetáculo nesse teaser: http://www.youtube.com/watch?v=-jkF5_J-E-Q .