Quem tem medo de assombração?

Na peça Estratagemas Desesperados, mulheres confrontam a violência que vivenciaram ao assumirem a condução dos relatos de horror

Carlota Joaquina, Amanda Lyra, Stella Rabello e Monalisa Silva: as atrizes da peça Estratagemas Desesperados, em cartaz no Sesc 24 de maio (Foto: Mayra Azzi)

O cenário delineia alguns cômodos de uma casa. Algumas vigas de madeira, uns poucos móveis. As personagens se sucedem uma a uma, com breves interlúdios de interação conjunta. A primeira mulher (Monalisa Silva) conta a história da casa onde vive, uma casa reativa e emocional que aprendeu a proteger as mulheres e a “devorar” aqueles que as ameaçam. A segunda mulher (Carlota Joaquin) revê o vizinho esquisito, um homem já velho e flácido a quem vai visitar depois de tanto tempo, e rememora passagens da infância quando esse mesmo vizinho a puxava de lado e a levava para seu quarto a fim de lhe mostrar o canibalismo de mamãe hamster. Então, aparece a terceira mulher (Stella Rabello), com a caveira que encontrou no meio do lixo e que desperta nela uma identificação delirante, talvez. E aí a quarta personagem (Amanda Lyra) se apresenta, contando sua obsessão erótica por doenças cardíacas, especialmente os batimentos cardíacos irregulares.

As quatro personagens voltam a partilhar o palco, em situações que remetem à estética de filmes B, com cenas de terror entrecortadas que beiram o cômico. A obsessão pelo coração com a condição cardíaca ideal e a busca pelos ossos que deem à Vera, a caveira, uma existência completa prosseguem, até o desfecho. A ótima trilha sonora de Azulllllll e Lello Bezerra, combinada à proposta lumínica de Sarah Salgado, contribui para criar uma atmosfera tensa, de suspensão e suspense, mas sempre com um toque de picardia.

E este talvez seja um dos grandes acertos de Estratagemas Desesperados, peça com direção e dramaturgia de Amanda Lyra e Juuar, em cartaz no Sesc 24 de Maio (São Paulo): embora as histórias se entrelacem pela questão da violência contra a mulher ─ sobretudo os assédios e abusos sexuais ─, a opção pelo tom de “horror sarcástico”, graças ao qual a tensão se mantém sempre presente, no fio da navalha, com as personagens em risco permanente mas sob uma cadência de humor e mordacidade, confere voz e agência às personagens. Elas se vingam ao narrar, à sua maneira e desde a perspectiva que bem entendem, a própria história. Essa característica está na direção, na atuação, na direção musical e na iluminação.

O espetáculo nasceu de uma residência artística idealizada e conduzida por Amanda, com o objetivo de pesquisar e criar uma dramaturgia que tivesse como ponto de partida contos de escritoras latino-americanas contemporâneas que abordam o horror e a violência e têm na mulher o sujeito da ação. A residência, também batizada de Estratagemas Desesperados, ocorreu no Centro de Pesquisa Teatral (CPT) do Sesc Consolação, em São Paulo, entre julho e agosto de 2024, e promoveu o intercâmbio entre equipe criativa, participantes selecionadas/os e debatedoras convidadas.

Quatro textos acabaram se tornando o esteio da dramaturgia final: “Nada de carne sobre nós” e “Onde está você, coração?”, da argentina Mariana Enriquez (dos livros, respectivamente, As coisas que perdemos no fogo e Os perigos de fumar na cama); “Crias”, da equatoriana María Fernanda Ampuero (do livro Rinha de Galos) e o romance Cupim, da espanhola Layla Martínez, explicitamente inspirado nos trabalhos das autoras contemporâneas latinas.

(É curioso notar que Amanda, ao batizar a residência, já tinha em mente o título da futura peça. Se “estratagema” se refere a um ardil ou a uma artimanha com vistas a confundir ou ludibriar alguém, “estratagemas desesperados” podem ser tomados como os últimos recursos de enfrentamento de uma situação exasperante.)

No espetáculo, é o desejo das mulheres que vêm para o primeiro plano ─ e não a violência que sofreram. Há algo de perversidade e gozo no relato das personagens que tanto a adaptação dos textos quanto a interpretação das atrizes ressaltam. As mulheres em cena desafiam as assombrações que as rodeiam e o medo que porventura possam sentir, “desvitimizando-se”.

Trata-se de uma peça que depende do encaixe perfeito das cenas, das interações e das entradas e saídas para gerar o efeito que propõe. E, quanto mais as intérpretes se entregam ao jogo cênico, mais consistente e instigante se torna a experiência da espectadora, do espectador. Eu diria ao quarteto: divirtam-se muito em cena!

Confesso que dei boas risadas em vários momentos, o que pode até parecer bizarro. Mas essa bizarrice até que se torna reconfortante ─ e altamente política também.


Ficha Técnica 

Idealização: Amanda Lyra

Direção e dramaturgia: Amanda Lyra e Juuar

Elenco: Amanda Lyra, Carlota Joaquina, Monalisa Silva e Stella Rabello

Direção musical e trilha sonora original: Azulllllll e Lello Bezerra

Direção de movimento: Danielli Mendes

Cenografia: Valdy Lopes

Figurino: Diogo Costa

Iluminação: Sarah Salgado

Assistente de direção e de produção: Vinicius Silveira

Assistente de cenografia: Cris Cortilio

Produção de cenografia: Marília Dourado

Cenotécnico: Pelé Leonarchick

Modelista: Edson Honda

Engenheiro e operador de som: Murilo Gil

Operação de luz: Pâmola Cidrack

Design gráfico: Estúdio M-CAU

Fotos: Mayra Azzi

Assessoria de imprensa: Pombo Correio

Coordenação geral e produção: Amanda Lyra | Troca produções

Direção de produção: Aura Cunha | Elephante Produções


Esta crítica faz parte de uma edição da newsletter Diálogos Superinteressantes no Substack, disponível no link abaixo:

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