Teatro, saberes e debate público

Dia desses conversava com uma amiga, que trabalha com assessoria de imprensa em teatro e dança. Comentávamos um ou outro espetáculo. Falávamos como tais obras concentravam discussões pertinentes para o momento atual e disparavam reflexões interessantes, que poderiam contribuir para formulações críticas mais amplas. Porém, disse eu, a arte teatral – entendida aqui como a conjugação em consonância do fazer (o pôr em cena) e do fruir (a dinâmica entre a cena e o espectador) – não é vista como um campo de produção de saberes relevantes para o debate público. Se com o teatro é assim, disse minha amiga, imagine com a dança!

Pois é.

Quando menciono o desinteresse pelo teatro e pelos saberes produzidos no campo teatral no debate público, refiro-me à falta de atenção e consideração para com os materiais com os quais o teatro tem trabalhado ultimamente (temas disparadores, formas estéticas, discursos, estratégias de presença, arquivos etc.) tanto quanto para com os procedimentos e o resultado mesmo desse trabalho. Ora, assim como a literatura e as demais artes, o teatro também lida com o político, o imaginário e o simbólico, mobiliza julgamentos estéticos e, por conta disso, relaciona-se com os paradigmas socioculturais, autorizando/desautorizando/legitimando/deslegitimando percepções de valor.

Resolvi, então, fazer um rapidíssimo exercício mnemônico e entrelaçar algumas peças a que assisti recentemente – a fim de não perder o fio da meada daquele papo com a amiga ou, quem sabe, gerar algum substrato para um aprofundamento teórico meu posterior – e assinalar algumas contribuições importantes e inspirad/or/as. A escrita é propositalmente leve e solta. Não entrarei em detalhes da encenação nem destrincharei questões; a ideia é ficar no aperitivo mesmo.

1.
A boca que tudo come tem fome (do cárcere às ruas) │Companhia de Teatro Heliópolis
(Foto: José de Holanda)

Começo com uma peça de cujo processo criativo participei. O bom e velho coletivo da favela e comunidade Heliópolis – que completou 25 anos de existência – leva para a cena as vivências e os desafios dos egressos (no jargão judiciário) ou sobreviventes (no jargão da militância) do sistema prisional, sob o eixo estruturante da figura de Exu, o orixá das encruzilhadas, destrancador de caminhos. Para o encenador Miguel Rocha e a dramaturga Dione Carlos, encontrar as formas artísticas (poéticas, estéticas) mais precisas a fim de lidar com um grupo social e um orixá tão estigmatizados na sociedade brasileira quanto os egressos e Exu não foi uma tarefa simples. Não só o tema mas também as escolhas dramatúrgicas e cênicas oferecem um ótimo arsenal de debate para pensarmos nos mecanismos de opressão (e “desopressão”) presentes tanto no sistema judiciário criminal do país quanto nas práticas e no imaginário da população brasileira.


2.
Lady Tempestade │Dramaturgia de Silvia Gomez, direção de Yara de Novaes e atuação de Andrea Beltrão
(Foto: Gil Tuchtenhagen)

Já comentei a dramaturgia em um post no meu perfil literário do Instagram (leia aqui). Tive a oportunidade de assistir à montagem recentemente, o que ampliou – e muito – meu envolvimento com o texto. O tema? Numa primeira camada, diria que se trata de um encontro com os diários da advogada e ativista Mércia Albuquerque Ferreira, que neles relata seus embates com os militares-gafanhotos, a personificação cruenta e cruel da ditadura brasileira, durante os anos de chumbo, enquanto atua em prol dos presos políticos. No entanto, não dá para se contentar com a afirmação de que a peça é “sobre isso” ou “aquilo”. Na montagem, sobretudo, fica evidente a nossa própria participação nesse relato. O jogo ficção/documento proposto por Silvia, e ressaltado por Yara e Andrea na encenação, dispara perguntas a todo o tempo. E nós com isso? E nós com isso hoje e agora? O espetáculo não só cria como instaura um portal de ativação da memória coletiva; nos concede, a cada um e uma de nós, uma falésia dentro do peito. Sim, precisamos continuar falando de democracia, de dignidade, de cidadania para que golpes de Estado e ditaduras não se repitam. (Em tempo: sem anistia a golpistas!) Na cena final, um gesto-síntese que move, remove e comove.


3.
Tapajós │Gabriela Carneiro da Cunha, Mafalda Pequenino e coletivo (Projeto Margens)
(Foto de Anouk Maupu)

Escrevi um perfil da Gabriela para a CartaCapital recentemente. A artista, além de atriz e idealizadora da (por ora) trilogia de “escuta” dos rios brasileiros – Araguaia, Xingu e agora Tapajós –, também é codiretora do documentário A queda do céu, baseada no livro homônimo de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que deve estrear em novembro. Pois bem: a mais recente performance teatral radicaliza escolhas estéticas que Gabriela já vinha pesquisando desde Altamira 2042, a peça anterior; ambas bem diferentes, aliás, de Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos, o primeiro espetáculo do projeto. Aqui também há a lida com o documento, apoiada em um trabalho com as sonoridades humanas e não humanas. A obra se aproxima do teatro documental sem deixar o performático (a ação como eixo) e o performativo (o investimento no discursivo), tampouco o simbólico. Arriscaria até defini-la como um exercício cênico de jornalismo literário. Tapajós nos envolve na discussão sobre o garimpo ilegal; o neocolonialismo que se mantém por meio de um sistema extrativista de minérios; a destruição da floresta e do mundo vivo e, principalmente, a situação de vulnerabilidade e riscos imposta às populações indígenas do Brasil.


4.
Sinfonia capital – em tempos de segunda mão │Cia. Les Commediens Tropicales & Quarteto à Deriva
(Foto: Mari Marich)

As peças dos Commediens carregam sempre uma combinação de crítica ácida e desbunde. Há ternura, ironia, sarcasmo, inteligência e humor. Nesta, o elenco está afiadíssimo. Deliciosamente provocativo, o espetáculo é baseado no livro O Fim do Homem Soviético (2013), da escritora bielorrussa e Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch, e se debruça sobre as ruínas ideológicas e afetivas da União Soviética pós-Perestroika por meio de “movimentos cênicos”, que vão se encadeando e funcionam como recortes ou abordagens narrativas de um contexto maior. A dramaturgia é de Carlos Canhameiro e a encenação, coletiva. Tudo se passa na Rússia imediatamente após a queda da URSS, mas parece que estamos assistindo ao esfacelamento do Brasil contemporâneo – e isso graças às escolhas dramatúrgicas e cênicas. Como nos deixamos soterrar pelas promessas do capitalismo desse jeito? Por que engolimos o neoliberalismo com subserviência e afetação? A peça é encenada nas instalações do Cine Dom José, no centro de São Paulo, uma grande sala de cinema que exibe filmes pornô, o que dá uma dimensão ainda mais interessante à experiência teatral. Embora o subtítulo mencione “tempos de segunda mão” (aliás, outra ótima questão levantada), a peça tem frescor para dar e vender. E o Quarteto à Deriva encanta com a trilha sonora executada ao vivo. Pena que os anticomunistas delirantes brasileiros não vão ao teatro…


5.
Velocidade │Quatroloscinco
(Foto: Igor Cerqueira)

Como definir a proposta do coletivo mineiro? Espetáculo híbrido, misto de ensaio cênico com elementos ficcionais e autoficcionais, estruturado como um livro com prólogo, capítulos variados (ora um conto, ora um poema, ou ainda uma página em branco só com um título brincalhão… ) e epílogo? Sim, essa poderia ser uma definição. Outra, que o próprio grupo propõe em seu programa, seria a de uma peça-jogo, cujas partes – agora digo eu – parecem se suceder de modo autônomo e heterogêneo, às vezes até friccionando-se, o que resulta em um mosaico de sentidos. O protagonista do espetáculo é o tempo, que não só a dramaturgia de Assis Benevenuto e Marcos Coletta como também a direção de Ítalo Laureano e Ricardo Alves Jr. tentam concretizar por meio das variadas expressões da velocidade, da aceleração, da circulação. De que forma materializar a experiência do tempo, como representá-la, corporificá-la, torná-la palpável? Capturando-a no âmbito da vivência humana, pessoal, convivial, íntima. Na pausa. Na brecha. No respiro. No sonho. A cena final, quando os atores e atrizes – sempre no palco – retomam seus lugares de pausa, os objetos se encontram todos suspensos/suspendidos e o discurso é criado pelo jogo entre sonoridade e luz, reverbera na espectadora: o que é esse instante de vida que se esvai num átimo?


6.
Macuco │ Dramaturgia de Victor Nóvoa, direção de Lubi Marques, atuação de Edgar Castro e Vitor Britto e participação em vídeo de Cleide Queiroz
(Foto: Noelia Nájera)

Um dos textos mais líricos da atual temporada paulistana, nascido das memórias litorâneas do santista Victor em contraste com as indagações/indignações diante da precariedade laboral sob o capitalismo tardio e a especulação imobiliária voraz em área caiçara no Brasil atual, Macuco não estabelece hierarquias entre o plano realista, o plano da memória e o onírico: a matéria cênica transita de um para outro com naturalidade, algo que a encenação de Lubi Marques respeita e ressalta, como se nossa cosmologia tropical já não tentasse mais delimitar fronteiras ao estilo racionalista-ocidental. Entregador por aplicativo, que está perto da idade de se aposentar mas muito distante de uma aposentadoria, Sebastião enfrenta as memórias da infância e juventude que teimam em devolvê-lo à vila de pescadores onde nasceu, de onde fugiu e para onde não mais voltou. Mas, um dia, é preciso retornar. O presente atualiza o passado. Aos poucos, desvelam-se os motivos da fuga de Sebastião, que vão se conectando a um contexto repressor no âmbito doméstico e também no coletivo. As críticas sociais se entrelaçam à intensa poesia, coroada pela alegoria dos macucos, aves típicas da Mata Atlântica ameaçadas de extinção, que permeia toda a obra.


Com estilos, escolhas e técnicas diversas, essas peças disparam perguntas, engajam afetos e propõem interlocuções: geram conhecimento. E conhecimento pertinente para o debate público no Brasil contemporâneo não apenas por conta dos “assuntos” que enfrentam, mas sobretudo pelas formas estéticas que põem em jogo.