Cenas vistas d’a_ponte #1: Relatório Figueiredo

Chamamos de “pontes” as estruturas construídas para a transposição de “obstáculos geográficos”, sobretudo águas: rios, lagos ou lagoas, braços de mar. Graças a elas, o trajeto não é interrompido e os fluxos são mantidos – os viários e os aquáticos, os dos veículos e os das correntezas. Há, portanto, uma conciliação de movimentos, mas sem pacificação; não se apagam nem desviam as águas, afinal. Elas permanecem ali, sob as estruturas, marcando presença.

Não me parece à toa que um festival cuja proposta é reunir pesquisas acadêmicas e artísticas produzidas por estudantes de Artes Cênicas de distintos lugares do país tenha sido batizado de ‘a_ponte’. Na combinação entre apresentação de artigos e apresentação de espetáculos ao longo de uma semana, sempre com mediação ─ e, por conta disso, com a oportunidade de uma perspectiva crítica e dialógica ─, os fluxos se manifestam, também sem pacificação. Assim, a circulação de afetos e saberes institui, mesmo que de modo efêmero, uma “comunidade que vem” (nas palavras de Georgio Agamben). Certamente algo se renova dentro da gente e nas cenas mínimas que geramos juntxs, trocando ideias e abraços. Ao atravessar a ponte, a ponte d’a_ponte, não saímos incólumes; e esta é provavelmente uma contribuição das mais preciosas.

Tive a oportunidade de acompanhar a maioria das atividades da sexta edição do festival, realizado pelo Itaú Cultural sob a batuta da curadoria de Artes Cênicas entre 23 e 27 de janeiro de 2024. Registro algumas breves reflexões a respeito dos espetáculos a que assisti e/ou cuja mediação coube a mim. Para esta primeira análise, me oriento pelos conceitos propostos pela pesquisadora estadunidense Diana Taylor em seus estudos sobre as expressões performativas das sociedades latino-americanas, destacando o papel do corpo na transmissão do conhecimento. Taylor reúne ─ sob o termo “repertório” ─ gestos, danças, cantos, rezas, alucinações, performances artísticas, entre outros atos efêmeros, que não só preservam como também atualizam a memória incorporada, corporificada. Ao “repertório”, Taylor contrapõe o “arquivo”: registros, documentos, resíduos arqueológicos, ossos etc., fontes de informação que resistem a mudanças em razão de sua materialidade física. Quanto ao “testemunho”, destaco as reflexões de Márcio Seligman-Silva, que o define como “vértice entre a história e a memória, entre os ‘fatos’ e as narrativas, entre, em suma, o simbólico e o indivíduo”: um gesto enunciativo daquele ou daquela que presenciou/ vivenciou algo em “primeiridade” e tenta dar forma à sua experiência única segundo sua capacidade de julgar.

Estabeleço diálogo com três trabalhos que, em suas opções cênicas, acabam por ressaltar pelo menos um dos conceitos mencionados.

I. Devolver a mirada ao documento

O artista Pedro Vilela em Relatório Figueiredo (crédito: Pedro Sardinha)

O arquivo é o Relatório Figueiredo, um conjunto documental de sete mil páginas, fruto da Comissão de Inquérito Administrativo instalada em 1967 a pedido do ministério do Interior e presidida pelo então procurador da República, Jader de Figueiredo Correia, para investigar crimes e irregularidades cometidos pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Descoberto em 2012 por Marcelo Zelic, então vice-diretor do Grupo Tortura Nunca Mais-SP, depois de haver estado supostamente desaparecido por mais de quarenta anos, o relatório foi um importante subsídio para os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Nos documentos, além da síntese de Figueiredo, constam denúncias e depoimentos relacionados à luta pela terra e às graves violações de direitos humanos contra os indígenas.

O ator-criador Pedro Vilela apresenta Relatório Figueiredo, uma palestra-performance com base na história daquele relatório e em um recorte do conjunto documental. O trabalho é em quase tudo palestra; em conversa pós-espetáculo, Vilela afirmou que abdicou de qualquer teatralidade em relação à sua presença numa tentativa de “apagar-se” da encenação. Permite-se apenas um indício de performatividade: reordenar o cenário feito de pequenas toras e fitas adesivas zebradas, narrando assim metaforicamente o avanço do poderio financeiro (agronegócio, garimpo, grandes obras etc.) sobre áreas indígenas e seus recursos naturais. Ao ler o texto de sua “palestra” de maneira distanciada, Vilela tenta reduzir o artifício teatral ao mínimo a fim de evidenciar o teor e a importância do arquivo. No entanto, o próprio arquivo lhe devolve a mirada, indagando-lhe: e você, o que você encontra aqui? Essa pergunta fica a ecoar quando o trabalho termina. Afinal, descobrimos ou redescobrimos o Relatório Figueiredo graças ao artista; mas ficamos sem saber quais as implicações do artista com esse relato. Em O que vemos, o que nos olha (2010), o filósofo francês Didi-Huberman nos propõe um dilema: aproximarmo-nos de uma imagem (ou de uma cena, um documento, um arquivo) pelo que vemos, atendo-nos ao visível, ao já exposto, à evidência, ou optarmos por aquilo que nos olha, pelo invisível, o aparente vazio, em uma espécie de “crença”. Vilela detém-se no primeiro movimento [o que vemos].

A performance está na recriação do espaço como metáfora do avanço do capital sobre as terras indígenas (crédito: Pedro Sardinha)

Há certo efeito catártico nos minutos finais, na sequência de imagens e repetições da estrutura discursiva, na inserção de uma notícia recentíssima e na projeção derradeira; assim, o espectador e a espectadora são, de certa forma, instados a “ficar com o problema” (parafraseando Donna Haraway): lidar com o incômodo da existência do relatório e da permanência das questões destacadas pelo conjunto documental ainda hoje. No entanto, o artista parece sair de cena sem participar desse pacto, como se ele fosse apenas um arauto, sem qualquer envolvimento no teor da mensagem.

Certamente a relevância e atualidade das questões indígenas explicam as motivações do trabalho. Relatório Figueiredo nos interpela pela pertinência do documento. No entanto, também deixa a sensação de uma ausência, a ausência do ator como aquele que age, que exerce agência na cena. Com essa ausência, a cena ganha um caráter informativo, não performativo (implicado), quase como uma aula, domesticando o acontecimento e sua politicidade.

Talvez seja preciso olhar para o material ─ o arquivo, o documento ─ com menos reverência ou distanciamento/frieza e apoiar-se numa posição mais dialógica, mais arriscada. Deixar-se indagar, desequilibrar-se, levantar-se de novo. E não se esquivar da mirada que o arquivo lhe devolve. O meio caminho entre a ausência concreta do ator (que representaria uma opção pela “presença fantasmagórica”) e a presença implicada em cena (em estado de disponibilidade ou prontidão) parece deixar também a meio caminho os sentidos possíveis daquilo a que assistimos (como testemunhas). Sabemos que a obra Relatório Figueiredo se mantém em processo, como o próprio Vilela comentou no bate-papo. Existe, então, a possibilidade de lapidar o equilíbrio entre palestra e performance de modo que o artista possa, enfim, completar o movimento proposto por Didi-Huberman: lidar com aquilo que não está necessariamente evidente ou exposto no arquivo com o qual trabalha e assim comprometer-se.

Cena de Relatório Figueiredo (crédito: Pedro Sardinha)

Referências:

  • AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Editorial Presença, Lisboa, 1993.
  • SELIGMAN-SILVA, Márcio. O local do testemunho. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, 2010, v. 2, n. 1, pp. 03–20. 
  • TAYLOR, Diana. Escenificar la memoria traumática: Yuyachkani. In: El archivo y el repertorio: el cuerpo y la memoria cultural en la Américas. Santiago: Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2015, pp. 273-302.