Na simplicidade dos dias

Logo nas primeiras cenas de Dias Perfeitos, do alemão Wim Wenders, Hirayama dirige rumo à primeira parada de seu trabalho ─ ele limpa sanitários públicos em Tóquio ─ enquanto põe para tocar, em cassete, The House of Rising Sun, da banda britânica The Animals. Muito é anunciado nesse início de filme: acompanharemos a rotina de Hirayama, um homem sereno e solitário que gosta de cultivar mudas e de ler antes de dormir, além de ter uma coleção invejável de cassetes que escuta enquanto dirige; as músicas que acompanham Hirayama em seus trajetos pela cidade revelam algo sobre ele e seu estado de espírito; Tóquio é mais que um mero cenário; os enquadramentos sugerem que a capital se tornou uma espécie de companheira do protagonista. E, não menos importante, a abertura à experiência sensorial cotidiana por meio da sensibilidade do olhar: komorebi, palavra japonesa usada para descrever o momento em que a luz do sol atravessa as folhas das árvores.

A rotina de Hirayama é simples: acordar, cuidar das plantas, preparar-se para o trabalho, tomar uma latinha de café, dirigir até os sanitários que deve limpar enquanto escuta um de seus cassetes. Almoçar no parque, enquanto se permite apreciar o komorebi e tentar registrá-lo. Interagir com as pessoas que cruzam seu caminho. Ir ao banho público. Jantar no restaurantezinho de sempre. Voltar para casa, ler algum livro antes de dormir ─ Palmeiras Selvagens, de William Faulkner, é um deles. No dia de folga, a rotina muda um pouco. Aos poucos, vamos intuindo algo mais sobre esse homem ─ sem saber, necessariamente, seus porquês. Wenders constrói o mundo de Hirayama como filma Tóquio: sem obviedades, sem parâmetros fixos ou “mapas” prontos, mas com fluidez e atenção às miudezas.

A beleza do filme ─ ou uma de suas belezas ─ está em justamente transformar cenas cotidianas e, em aparência, banais numa narrativa cinematográfica envolvente, cativante, nutrindo-se da própria linguagem do cinema. Kôji Yakusho, ator que interpreta Hirayama, está excepcional no papel. Confere gentileza, contenção e sensibilidade a seu personagem com maestria. Foi premiado no Festival de Cannes de 2023 por sua atuação. Hirayama é tão fugidio quanto presente; me pareceu um homem ressurgido das próprias cinzas, alguém que precisou romper com uma vida anterior para poder alcançar-se a si próprio. Por isso, não está em conflito nem com seu trabalho, que faz com dignidade e diligência, nem com sua solidão, que não lhe parece um fardo. Há, nessa experiência do simples e diminuto (do inescapável?), uma escolha sábia; sem grandes expectativas, as novidades tornam-se sempre bem-vindas. Trata-se de um exercício permitir-se surpreender pela luz que atravessa as frestas.

Assim como as canções, as leituras do personagem também sugerem algo a respeito de seu passado: William Faulkner, Patricia Highsmith, Aya Kōda. Alguma paixão irrefreável, alguma transgressão? Algum sentimento de incongruência, desencaixe, esquisitice? A diferença entre medo e ansiedade? A escuta da natureza, o aprendizado do silêncio?

Quando o longa terminou, tive uma sensação curiosa: imediatamente senti saudade de Hirayama, de acompanhá-lo em mais um dia. Lembrei-me da crônica Pequenas epifanias, de Caio Fernando Abreu, que me acompanha há décadas. Foi muito bom voltar a assistir a um filme de Wim Wenders na telona, completamente hipnotizada pela atuação do Yakusho e embalada por canções que compõem o imaginário de certa época e com certa “textura sonora”, conforme comenta uma das personagens. Saí do cinema com outra disponibilidade para, ao menos, viver o dia seguinte. E depois o outro, o outro, o outro…  

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Dias Perfeitos (Perfect Days, Alemanha/Japão, 2023).

Direção e roteiro: Wim Wenders

Elenco: Kôji Yakusho; Tokio Emoto; Arisa Nakano; Aoi Yamada; Yumi Aso.