MEUS DIAS COM CLARICE – dia #C

(Leituras inventivas, às vezes reinventadas, de um processo criativo)

DIA C

Não saímos de casa, Clarice e eu. Pegamos uma gripe forte, daquelas que derrubam as defesas do corpo e da alma. Havia a ressaca dos arranhões ininterruptos dos dias anteriores – uma vez mais, seria preciso percorrer rotas (ó) rotas (ô) para manter as salvaguardas em pé?

Como se não bastasse. Reparo que Clarice parece gostar dessa fórmula. Como se não bastasse a claridade das duas horas. Como se não bastasse seu olhar paciente e submisso. Como se eu mesma não me bastasse. Como se o mundo não bastasse para mim.

A gripe nos exigia uma dose extra de sozinhez. O corpo dolorido e pesado não reagia aos pensamentos lentos e densos.  Pensamos demais as duas e, mesmo anestesiadas pelo ar seco e cruel, sentimos tanto. Naquela quarta-feira, então, preferimos a quietude. Viver era contagiante e contagioso, algo demais para um momento de poucas defesas.

Numa terra de morenos, ser ruivo é uma revolta involuntária... (Foto: Mafê Vomero)

— Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem farpas.

E eu pensava: minha metade no mundo!; mas ambos éramos comprometidos: eu com minha solidão impassível, ele com uma mulher, qualquer outra mulher. E então apareceu sua outra metade no mundo. Ambos eram comprometidos: ele com sua natureza aprisionada, ela com sua infância impossível. Que me importava se isso seria uma marca quando eu aprendesse a erguer insolente minha cabeça de mulher? Finalmente tornei-me insolente a ponto de admitir-me mulher? Tenho estado impassível, na verdade, quase intocável.

Coristina e vitamina C. Jo-ha-kyū. Adormecemos.