Cenas vistas d’a_ponte #3: Sankofa (Bando Jaçanã)

Tive a oportunidade de acompanhar a maioria das atividades da sexta edição do festival a_ponte ─ cena do teatro universitário, realizado pelo Itaú Cultural sob a batuta da curadoria de Artes Cênicas entre 23 e 27 de janeiro. Registro algumas breves reflexões a respeito dos espetáculos a que assisti e/ou cuja mediação coube a mim, mobilizando os conceitos de “arquivo”, “repertório” e “testemunho”. Nos posts anteriores, comento dois outros trabalhos.

III. Os griôs da encruzilhada

O Bando Jaçanã em cena (crédito: Wes Barba)

Na encruzilhada, lá bem onde os tempos se embaraçam e se embaralham sob a égide de Exu, encontra-se um bando de artistas de Jova Rural, bairro do extremo norte de São Paulo. O coletivo teatral surgiu graças a um processo colaborativo de nove meses, realizado por meio do Projeto Espetáculo da Fábrica de Cultura Jaçanã, cujos frutos foram um nome e uma peça, ou talvez uma peça que institui um grupo e o batiza: Bando Jaçanã (2015). Desde então, as pesquisas artísticas do coletivo giram em torno das lutas femininas, da ancestralidade negra e do território.

O bando levou aos palcos do festival a_ponte um espetáculo criado a princípio em versão audiovisual durante a pandemia, depois revitalizado para temporada presencial: Sankofa – cantando e recontando histórias do cangaço e da Jova. É fruto de criação coletiva e tessitura de depoimentos colhidos na comunidade de Jova Rural e relatos que vinculam os moradores locais às migrações internas do país, especialmente àquelas advindas do sertão nordestino, marcado pelo fenômeno do cangaço do fim do século XIX às primeiras décadas do XX.  A direção é de Antonia Mattos e a encenação dinâmica costura, com ritmo e humor, texto e música. Atrizes e atores parecem bastante à vontade em cena.

O que logo chama a atenção quando vemos as/os artistas no palco e conhecemos sua trajetória é o exercício de “aquilombamento” (cf. Beatriz Nascimento e Abdias do Nascimento), evidente na busca por estabelecer um espaço comum de pertencimento e identificação no extremo norte da cidade, às margens da megalópole, um comum orientado pelo reconhecimento das raízes partilhadas via ascendência e/ou ancestralidade. O aquilombamento está presente também na expressão da postura de autonomia e contestação em relação aos discursos hegemônicos que permeiam as dinâmicas na cidade de São Paulo.

A atriz Moni Bardot como um dos artistas que representa, em cena, Sankofa, o pássaro mítico (crédito: Wes Barba)

Na peça Sankofa – cantando e recontando histórias do cangaço e da Jova, além do dispositivo fundamental do símbolo “Sankofa” [pássaro mítico que voa para frente e mantém a cabeça voltada para trás, tendo um ovo – o futuro – no bico], o testemunho é um dos motores narrativos (e éticos, eu diria) da dramaturgia. Logo no início, aparece Dadá, sobrevivente do cangaço, integrante do grupo de Lampião e viúva de Corisco ─ de quem foi vítima de sequestro e estupro na infância, depois companheira e mãe de sete filhos. Numa das primeiras cenas da peça, Dadá está vivendo em Salvador, já sob anistia do governo, quando recebe a visita de um documentarista que deseja contar sua história. Dadá recusa a mediação, porque quer ela mesma narrar o que viu e viveu. Quer testemunhar e oferecer outra perspectiva diante dos relatos oficiais, sem que outros editem sua fala.

A inserção desse pequeno prólogo na peça ─ sintetizado na ideia: “Eu [mesma] conto minha história” ─ revela o ponto de partida do Bando Jaçanã. A primeira parte se dedica ao cangaço e à participação das mulheres; além de Dadá, Maria Bonita e Sila também são destacadas. Na sequência, o fio matriarcal sai do sertão nordestino e chega, décadas mais tarde, ao bairro Jova Rural, surgido em meados dos anos 1980 em um terreno desapropriado pelo estado no qual se ergueu um conjunto habitacional em meio a sítios. A maioria das famílias que vivia ali, na época, ali era migrante e chefiada por mulheres.

A segunda parte da peça traz, então, as histórias do presente, evocando aquelas primeiras vivências. A reunião dessas mulheres se dá no Bar das Encruzilhadas, nome apropriado para a confluência de trajetórias e narrativas. Por participarem da formação e do crescimento do bairro, tornam-se testemunhas da formação de uma comunidade ─ mas não sem desafios. As personagens se inspiram em depoimentos de mulheres reais, familiares e vizinhas dos/as artistas na Jova Rural.

Cena da primeira parte da peça, que destaca a participação de mulheres no cangaço (crédito: Wes Barba)

Em determinado momento, a peça retoma a espetacularização da emboscada que matou Lampião, Maria Bonita e outros cangaceiros em 1938 ─ com direito até a cortejo com as cabeças dos mortos[1] ─ para lembrar a chacina de 2017, em que seis homens foram assassinados em um bar de Jova Rural, sem que o crime tenha sido elucidado. A violência vira notícia, mas a notícia não restitui vidas nem honra suas histórias. Por isso, o testemunho se mostra fundamental; é ato de resistência, de reexistência.  

“Nossas balas são nossas histórias”, diz o duo de artistas que representa o pássaro Sankofa. O testemunho é o ato de sobrevivência e reescritura da história: uma espécie de “ebó de palavras”. O pássaro segue voando para frente, sem deixar de olhar para trás, sobrevoa os “escombros do genocídio”, carregando o futuro: “caminhos inacabados”. Ainda há muito a contar, como aprendizes de griô que são. Na tradição afrodiaspórica, o griô é uma função social e política de transmissão oral dos saberes e fazeres comunitários. É, portanto, o guardião da memória e da história de uma comunidade. Por meio de sua pesquisa criativa, que também é política, os/as artistas do Bando Jaçanã buscam manter viva essa tradição.


[1] Foi Dadá também quem exigiu o sepultamento das cabeças dos cangaceiros assassinados em emboscada de 1938 e que ficaram expostas no museu do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, em Salvador, até 1969.