O pântano indagante: carta a uma espectadora emancipada

Breves reflexões sobre as potencialidades de uma crítica feminista

Registro do lançamento do blog A espectadora. A partir da esq., eu, Lúcia Romano, Poliana Piteri e César Augusto

Fui convidada pela atriz, diretora teatral e pesquisadora Poliana Piteri para participar do bate-papo de lançamento de seu blog de crítica teatral feminista, A espectadora. Projeto gestado já há algum tempo, A espectadora é resultado de uma trajetória permeada por atividades pedagógicas e criativas no campo do teatro e dos feminismos e se alimenta também dos estudos relacionados à recepção teatral feminista, tema central da pesquisa de mestrado da autora na Unesp, sob orientação da artista e docente Lúcia Romano. Na tarde do sábado 23 de abril de 2024, estivemos ─ Poliana, Lúcia e eu ─ na Selecta Livros, charmosa livraria do bairro da Mooca, em São Paulo, para conversar a respeito do que poderia ser uma crítica teatral feminista. A mediação foi do escritor César Augusto.

O público presente, formado por amigas e amigos de Poliana, tornou o ambiente acolhedor e caloroso. Não nos conhecíamos; foi um primeiro encontro mútuo. Em minha fala, partilhei algumas pinceladas sobre possíveis aspectos da crítica e da crítica feminista, mas não fiquei satisfeita comigo mesma. Saí de meu roteiro original, temerosa que minhas considerações soassem acadêmicas demais, porém não consegui “informalizar” minhas ideias a contento. Me perdi, inclusive, em alguns exemplos banais. No fundo, falei longamente sobre pouca coisa.

Faço essa mea culpa sem intenção de me justificar ou angariar a simpatia alheia. Nem sempre damos conta de expressar bem nossos argumentos ─ e imagino que outras mulheres também lidem com a autocobrança de um desempenho impecável mesmo sabendo que somos todas (e todos) imperfeitas. Enquanto conhecia as motivações de Poliana e acompanhava a elaboração de Lúcia sobre o percurso histórico da crítica teatral em São Paulo (no Brasil?), fui adentrando em uma espécie de “pântano indagante”. Muitas questões brotaram enquanto escutava as colegas. Por isso, quando chegou minha vez de falar, tergiversei.

Escrevo este texto como um exercício de desbravar o tal pântano indagante. (Por que pântano? Não sei, também poderia ser mangue; imagino um ambiente lodoso e constantemente alagado, fronteira entre o universo aquático e o terrestre.) Dedico-o à Poliana a fim de que pensemos juntas em maneiras de desenvolver uma abordagem crítica diante do acontecimento teatral e assumir uma perspectiva que seja tão singular quanto coletiva, encontrando e consolidando a própria voz, com base nas possibilidades que feminismos (as diversas expressões do feminismo contemporâneo) nos oferecem.

Entre a cesta e a clava

Outro registro do lançamento do blog A espectadora na Selecta Livros

Cara Poliana,

Que bonito saber que você tem um percurso criativo e pedagógico entrelaçado a uma prática contínua de estudos feministas. Você, mulher, mãe da Liz, artista, trabalhadora da cultura e da educação, acadêmica. Você, mulher branca, cidadã-moradora da cidade de São Paulo. Você, pesquisadora da universidade pública. Você, espectadora. Você: A espectadora.

Já leu um ensaio da escritora estadunidense Ursula K Le Guin chamado The Carrier Bag Theory of Fiction (A teoria da bolsa de ficção ou A ficção como cesta: uma teoria, em duas das traduções possíveis)? Nele, Ursula apresenta um instigante exercício de mudança de perspectiva sobre as estórias (narrativas inventadas, ficcionais) que contamos. Ela parte da teoria elaborada por Elizabeth Fisher em Womens’s Creation (1975), que propõe uma ‘releitura’ dos primórdios da humanidade a partir do artefato definidor da experiência: em vez da clava (ou lança) e de seu uso no ataque a ─ ou na defesa contra ─ possíveis inimigos, a cesta (ou a sacola) como recipiente fundamental para carregar os frutos das coletas e até as crias, e nos instiga a ir além da estória que todo mundo conhece: a do Herói com seu objeto pontiagudo pronto a matar. Como seria contar a história da cultura a partir da cesta, instrumento de sustento coletivo? O que ocorreria se as onipresentes e hegemônicas ideias [ocidentais] de “jornada de herói” e de conflito (guerra, embate) perdessem sua onipresença e hegemonia, permitindo a emergência de outras estórias? O que seria narrado? De que modo? Por quem?

Acho esse ensaio de Ursula um ótimo ponto de partida para a prática crítica textual. Muitas trilhas são abertas com a reflexão sobre a cesta como meio e modo de escrever a partir de uma abordagem feminista. Abandonar a supremacia da clava, do herói e do conflito obviamente não significa ignorar ou negar sua ocorrência, mas considerar que existem outros pontos de vista, outros personagens e outras formas éticas e estéticas para a escrita. Ursula cita a escritora estadunidense Lillian Smith: “O que Freud entendeu erroneamente como sendo sua falta de civilização, seria, na verdade, a falta de lealdade da mulher à civilização”, na tradução de Priscilla Mello. Poderíamos ser mais explícitas: falta de lealdade à ideia fálica de civilização.

Aliás, o texto de Ursula nos incentiva a perguntar sempre: quem autoriza, autorizou ou segue autorizando os ‘modelos’ vigentes? Estão no registro da cesta ou da lança?

No caso da crítica teatral, há certos parâmetros esperados ─ a interlocução com o acontecimento teatral e seu contexto, a análise dos elementos da obra, a ponderação sobre o funcionamento ou não das propostas cênicas, entre outros. No entanto, há muitas possibilidades de expressão, para além de algum modelo supostamente vigente. Aliás, o texto de Ursula nos incentiva a perguntar sempre: quem autoriza, autorizou ou segue autorizando os “modelos” vigentes? Estão no registro da cesta ou da lança?

Assumir uma postura feminista na vida, para além dos rótulos ou dos efeitos de discurso, exige um questionamento contínuo em relação às opressões existentes, às violências simbólicas e concretas e às dinâmicas de poder (as hierarquizações e os binarismos, sobretudo), mas também uma abertura às existências outras-que-humanas e um pensamento tentacular, como ensina a filósofa estadunidense Donna Haraway. Penso que não é possível ser feminista, de fato, sem ser interseccional: antirracista, anticlassista, anticapitalista, anticolonial. Parece, então, que ser feminista é carregar uma cesta de sementes tanto “anti-hegemonias” quanto anti-hegemônicas. E isso às vezes faz com que nossas expressões políticas soem uma rebeldia constante ao imperativo do Herói e sua clava. Por isso, urge que encontremos outras narrativas nas quais possamos habitar. Mundos em que caibam outros mundos, como dizem os zapatistas.

A socióloga e historiadora aymara-boliviana Silvia Rivera Cusicanqui já dizia que nós, filhas e filhos de territórios colonizados, carregamos uma alma dividida ─ pä chuyma, em aymara ─, uma alma dividida entre dois mandatos impossíveis de cumprir. Na academia latino-americana, por exemplo, estamos sempre operando entre a submissão à tradição do colonizador e a autonomia dos saberes populares, advindos do conhecimento ameríndio e afrodiaspórico. A conciliação é tão inevitável quanto impossível. Esse paradoxo define nossa produção de pensamento ─ e não as etiquetas vindas de fora que querem definir o que supostamente pensamos. Silvia diz: o nosso é um pensamento ch’ixi (outro termo aymara que deixarei você desbravar por si mesma). E o que isso tem a ver com uma crítica teatral feminista? Ora, ainda seguindo o fio proposto por Silvia, acho que é preciso reconhecer que tanto o cânone (ou a epistemologia canônica) quanto a rebeldia epistemológica e indômita estarão presentes no seu ato de expectação [palavra esquisita] e no seu ato de escrita. Por isso, durante o bate-papo, usei aquela imagem do trilho ferroviário, em que o vagão vai e vem entre a objetividade e a subjetividade. Cada espetáculo [no bom sentido do termo] pede um deslocamento diferente segundo o que leva à cena e os enunciados que corporifica (ou deixa de incorporar).

A crítica teatral brota da experiência da espectadora diante de um acontecimento teatral, mas também responde a elementos concretos que estão postos no palco, levando em conta os modos de produção e a ficha técnica. Há casos de incoerência entre o discurso da cena e o que ocorre fora dela, por exemplo. Retomo perguntas que lancei aos presentes em nossa conversa na Selecta: o que faz de um texto sobre uma peça uma crítica, e não só isso, o que faz desse texto uma crítica feminista? O que uma abordagem feminista pode aportar para o diálogo com a cena? Há muitas armadilhas, contudo. Em tempos de imediatismos, totalitarismos de várias intensidades e lacrações, é preciso manter-se indagante. Chafurdar o pântano, como estou fazendo agora, desconfiar das respostas prontas, das receitas fáceis, das mensagens sob medida para saciar falsas fomes. E não esquecer que somos, antes de críticas, espectadoras emancipadas e ignorantes, nos sentidos de “emancipada” e “ignorante” trabalhados pelo filósofo francês Jacques Rancière.

Penso que a crítica de arte ─ por envolver criações de outras e outros ─ demanda de sua autora/de seu autor não só conhecimento e abertura à escuta e ao diálogo, mas também disposição e confiança para bancar as escolhas e os recortes nos quais vai se movimentar. Escrever crítica teatral não significa buscar agradar a alguém, mas criar um espaço propício para pensar junto, pensar com, iluminar aspectos importantes, estimular a reflexão e o questionamento, incentivar o debate. Tampouco será infalível nem dará conta de tudo. O importante é não ter aquela velha opinião formada de antemão.

Com quem você quer conversar? A forma textual depende disso também. E, como você está explorando possibilidades de escrita, recomendo que conheça a escritora canadense Anne Carson e desbrave seus deliciosos textos impossíveis de rotular.

Para mim, esse texto de Ali Smith reposiciona o debate entre gêneros (e não só os literários) de uma forma bastante inteligente ─ e, por que não?, feminista.

Por fim, queria partilhar com você um conto da escocesa Ali Smith que li há pouco tempo e me encantou. Intitula-se “Um conto real” e trata de questões metaliterárias, sobretudo o antigo debate sobre diferenças e hierarquias entre conto e romance. A narradora começa com o relato da conversa entre dois homens, um velho e um jovem, num café ─ o mais moço compara o romance a uma “puta velha e flácida” e o conto a uma “ninfa”, arrancando satisfeitos risos de concordância do outro. A inspiração para esse diálogo, nos termos em que se desenvolve, pode ter vindo da declaração de Alex Linklater, então editor da Prospect Magazine, sobre o lançamento do National Short Story Prize em 2006. Ao longo de “Um conto real”, a narradora vai desmontando as comparações machistas e sexuais “bem-intencionadas” usadas por Linklater. Ele nem é mencionado, porque não se trata de uma questão individual, mas coletiva, social. Importa narrar outras estórias ou histórias. A narradora convoca, então, a pesquisadora escocesa Kasia Boddy, estudiosa das formas breves e amiga de Ali Smith na vida “real”, a fim de deslocar tanto o ponto de vista quanto a gramática da discussão. É o diálogo entre narradora e Kasia que se torna central. Para mim, esse texto de Ali Smith reposiciona o debate entre gêneros (e não só os literários) de uma forma bastante inteligente ─ e, por que não?, feminista.

Termino esta carta com a sensação de que o pântano indagante se torna ainda mais denso e fértil. Há ainda muito a ser pensado e imaginado sobre a crítica teatral feminista no Brasil. Bem-vinda, Poliana, à tarefa. Parabéns pelo lançamento do blog. Parabéns por acolher suas inquietações, acatar o desejo. Você não está sozinha.

Um abraço,

Maria Fernanda

[A citação de trechos deste texto é permitida desde que mencionada a fonte.]

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