Cenas vistas d’a_ponte #2: O Evangelho da Terra segundo a Serpente

Como comentei no post anterior, tive a oportunidade de acompanhar a maioria das atividades da sexta edição do festival a_ponte ─ cena do teatro universitário, realizado pelo Itaú Cultural sob a batuta da curadoria de Artes Cênicas entre 23 e 27 de janeiro. Registro algumas breves reflexões a respeito dos espetáculos a que assisti e/ou cuja mediação coube a mim, mobilizando os conceitos de “arquivo”, “repertório” e “testemunho”.

II. Memórias e gritos do corpo-tela

A artista Natália Amoreira em imagem da videoperformance A Justiça ou Hamlet (crédito: Drielle Moura)

O repertório é o projeto Evangelho da Terra – Segundo a Serpente, um conjunto de práticas em poesia, cena, som e arquivo desenvolvidas entre 2019 e 2021 no âmbito do curso de Estética e História do Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) pela artista e pesquisadora Natália Amoreira. O projeto já rendeu um livro[1], um trabalho de conclusão de curso, performances públicas, uma escritura sonora, um texto dramatúrgico, ações coletivas e videoperformances.

Natália apresenta uma palestra-performance homônima, Evangelho da Terra Segundo a Serpente, mais acontecimento que conferência, pois o estado de atenção é conjugado com o estado de jogo e tais estados não se submetem ao discurso, mas sim se aliam. O trabalho traz um subtítulo-convocação: porque o esquecimento é como nos matar novamente. Durante a obra, em vários momentos, grita-se (alguém grita, no palco ou fora; podemos gritar também, se tivermos coragem): “eu me lembro”. Um caderno circula entre as espectadoras e os espectadores a fim de que as lembranças e os gritos não se percam. O que é preciso lembrar, de quem é preciso se lembrar, a quem é preciso lembrar. Natália sabe da importância de transformar esse repertório corporal e afetivo em arquivo. Afinal, a produção escrita ainda é considerada instrumento legitimador da “História” com maiúscula. O arquivo ainda se sobrepõe ao repertório e ao testemunho; exige-se, dxs subalternizadxs e oprimidxs, que apresentem “provas” materiais, concretas e contundentes. Afinal, ao vencedor, as batatas e o voto de confiança prévia. Aos vencidos, o esforço de escovar a tal História a contrapelo e desmonumentalizar monumentos [ou seja, tirar deles seu caráter “monumental”, blindado, impassível].

Natália Amoreira como Hamlet (crédito: Drielle Moura)

Em cena, então, temos uma “atuante” [atriz/jogadora]: meio mulher, meio seu avesso, sua sombra, sua alteridade, sua Outra. Mulher meio bruxa, meio maga, com meio rosto pintado de La Catrina, a Dama da Morte mexicana, ou de Caveira de Hamlet (que também, em determinado momento da palestra-performance, aparece como objeto). Aqui já há uma implicação da artista com o que vai nos revelar/relembrar: a experiência de ser mulher no mundo ─ experiência diversa, plural e interseccional, ressaltemos ─ jamais prescinde do corpo. Como sujeito não universal, não diluído, não ex machina, não pode recorrer a abstrações ou a discursos sem lócus; o lócus da mulher brasileira negra artista ativista é seu próprio corpo, um corpo sustentado pelas ancestras, um corpo ameaçado constantemente pelo combo patriarcal/capitalista/colonialista.

Em um equilíbrio bem dosado entre a palestra [o relato segundo os moldes aceitos pelo sistema hegemônico de produção de conhecimento] e a performance [as escrevivências, as oralituras, as afrografias, as expressões de ódio ou raiva, a abertura ao imprevisível e ao invisível, o cântico e a dança], Natália traz à tona narrativas não oficiais ao recorrer ao artifício de usar cartas do tarô, as das Arcanas Maiores. Serão apenas três, ela avisa de antemão, porque o tempo assim permite. A limitação é interessante, gera comprometimento. A plateia participa da escolha da ordem:  XVI – A Torre /Da Queda dos Falsos Mártires; XV – As Diabas e VIII – A Justiça ou Hamlet.

Cada segmento tem sua invocação e seu tratamento próprio. No de As Diabas, por exemplo, cinco mulheres são convidadas a experimentar suas “Marias”: “moças da rua que, dentro do imaginário das práticas ancestrais afro-latinas, são responsáveis pela circulação da matéria (dinheiro, sexo) e pelo exercício destemido da alegria e da beleza em meio à dor e à violência”, explica Natália em seu artigo[2]. Há, assim, a ativação de um matriarcado de imaginário ancestral que incorpora a dinâmica entre o singular e o coletivo e chama à roda outras existências (as existências que não existem, nos termos do filósofo Peter Pál Pelbart).

“O que aconteceu no Estácio?”, é a pergunta que move o trabalho. O que aconteceu no Estácio naquele 14 de março de 2018? O que acontece todos os dias com as mulheres e as meninas do Brasil, ganhando ou não a mídia e as redes? Natália não se detém na denúncia nem sucumbe à dor pela opressão ou à impotência pela falta de justiça; o termo “evangelho” significa boa notícia, e para alcançar essa boa notícia, é preciso remexer na terra, nessa terra de sangue e violência, mas também de tantas raízes e águas, de tantas histórias depositadas nos solos mais profundos de argilas desconhecidas, já bem antes dos 1500. É preciso não descansar, não desistir, cavoucar.

Videoperformance A Justiça ou Hamlet (crédito: Drielle Moura)

“Eu me lembro.”

Natália encerra sua palestra-performance mencionando o documentário Gilda Brasileiro – Contra o esquecimento (2018), de Roberto Manhães Reis e Viola Scheuerer. Conta que ficou impressionada com o relato sobre a professora de química carioca que pesquisa incansavelmente a história de uma estrada clandestina usada por traficantes de escravizados no século XIX, na região do Vale do Paraíba. Segundo Natália, o motivo de essa referência encerrar o trabalho é “a obsessão de Gilda com o Brasil no sobrenome; quando nada havia, sem credibilidade dos seus. Nada. Além de um impulso irreversível de justiça. Nada. Além da busca incessante por provas”.[3]

Natália faz, então, de sua palestra-performance um impulso irreversível de clamor por justiça e de produção incessante de provas, documentos, comprovações, arquivos, imagens, palavras. Compromete-se a lembrar e, assim, convoca a espectadora, o espectador a fazer o mesmo. “Eu me lembro.” A poeta, dramaturga e professora Leda Maria Martins já disse que o corpo afrodiaspórico é um corpo-tela: um corpo que carrega reservas mnemônicas e acervos cognitivos ancestrais. Por isso, a artista sabe que precisa entrar em cena, uma e outra vez, ativar as temporalidades curvas, instaurar novas produções de arquivo para seus repertórios ─ mesmo que seja difícil, mesmo que seja dolorido, mesmo que seja para arriscar-se a lutar contra o ódio.

A operação de luz fica a cargo do iluminador e fotógrafo Thiago Gouveia, que também participa do trabalho como presença dialógica, ao pontuar, sempre que necessário, “eu me lembro” .


[1] O livro Evangelho da Terra Segundo a Serpente (Urutau, 2021) e “…suas 182 notas de rodapé, uma fábula narrada por uma serpente sobre a fuga de Errante pela Terra Sem Lei, caçada dadas as proibições impostas pelo Imperador à sua existência”, escreve Natália Amoreira em seu artigo na revista Pontilhados: pesquisas da cena universitária (Itaú Cultural, 2022), p. 374.

[2] Moreira, 2022, p. 381.

[3] Moreira, 2022, p. 383.