
* Nathália interpreta o menino-narrador do livro de Bartolomeu Campos de Queirós. (crédito: Cristiano Trad).
Confesso que descobri a obra do escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós apenas no ano passado. Havia lido uma nota sobre sua morte, no início de 2012, mas foi só quando estive em Belo Horizonte para algumas visitas é que suas palavras chegaram de fato até mim. O amigo mineiro Claudio comentou algo a respeito da prosa poética e delicada de Bartô (1944-2012), como era chamado, e me apresentou o seguinte trecho do livro Ah! Mar: “Ah! Viver entre montanhas é estar perto do céu e andar sobre abismos. Nas montanhas, a voz esbarra nos montes e volta eco em outro tom. Há que ter, ainda, um andar paciente, um olhar curto, pois o horizonte é perto e o silêncio um companheiro solitário dos viajantes. E, quando se vence uma altura, descortinam-se mais espinhaços, longe do mar inventam-se oceanos”.
Mais tarde, já no segundo semestre, eu ouvi falar dele novamente: Bartô recebeu postumamente o Prêmio São Paulo de Literatura por Vermelho Amargo, sua primeira obra adulta (ou, melhor dizendo, voltada apenas para os adultos). E, fuçando na internet, cheguei a trechos de sua participação no Paiol Literário, creio que de 2011, evento promovido pelo Jornal Rascunho, uma das melhores publicações de literatura no Brasil.
Por isso, não quis perder a oportunidade de assistir ao espetáculo Por Parte de Pai, concebido e protagonizado pela atriz mineira Nathália Marçal e dirigido por André Paes Leme. No livro homônimo, Bartô funde ficção e realidade; ou, melhor dizendo, recria a própria infância apoiando-se nos artifícios tanto da memória quanto da literatura. “A casa do meu avô foi meu primeiro livro”, afirma ele, e então nos apresenta Joaquim, que escrevia nas paredes, detestava gatos e respondia às saudações dos vizinhos – “ô, seu Queirós!” – com um “Tem dó de nós”. A avó Maria, certo dia, acordou dizendo que havia sonhado com um animal, mas não se lembrava qual. “Vaca!”, bradou Joaquim. E, aproveitou a passagem de um cambista, para apostar todas as fichas nesse bicho. E não é que ganhou? Com o dinheiro, comprou a casa cheia de janelas onde o menino-narrador gostava de ficar e se alimentar de histórias.

* "As paredes eram o caderno do meu avô. Cada quarto, cada sala, cada cômodo, uma página." (Divulgação.)
O desafio de Nathália foi levar a prosa de Bartô para o teatro, mantendo-a viva e cristalina, sem engessá-la num formato pré-definido ou enquadrá-la num discurso dito teatral. Grande desafio! Veio daí a acertada opção pelo monólogo, imagino. Mas antes é preciso abrir as janelas da casa e convidar o espectador a fazer uma visitinha nesse saboroso universo das memórias; Nathália, então, chega ao palco depois de caminhar pela plateia. Fala da avó, que nasceu numa cidadezinha chamada Conceição do Mato Dentro, pra lá da Serra do Cipó. E, ao engatar a lembrança de sua avó à do avô Joaquim, a atriz, sem nos darmos conta, já nos introduz no universo poético do menino que aprendeu a se encantar com histórias naquela casa de paredes cheias de escrituras, em que havia um relógio em formato de oito infinito e o galo Jeremias.
O criativo cenário, de Ronaldo Fraga, brinca com nossa percepção. As mesas de distintos tamanhos insinuam que somos meninos, meninos de diferentes idades e sensibilidades, às vezes meninos pequenos e ingênuos, em outras meninos grandes e já entendedores de certas coisas bem importantes. Nathália narra com espontaneidade e leveza os relatos miúdos que povoam “aquela” casa. Mesmo seguindo marcações precisas, ela não deixa a fluidez e o ritmo escaparem. Em alguns momentos, fiquei um pouco incomodada com a movimentação da atriz: certas corridinhas de lá para cá, sem esperar que o relato recém-contado decantasse dentro de nós (fizeram falta uns segundos a mais de silêncio apenas para o arremate). A mesma ressalva faço à iluminação: achei o desenho de luz um pouco exagerado, prolixo, poderia ser um pouco mais seletivo. Mas nada disso tira a graça ou a intensidade do espetáculo.
>> Espaço para nossa imaginação
A transposição para o palco de um texto literário ou de um rol de poesias em toda sua inteireza oferece dois grandes riscos: uma interpretação totalitária, que imponha ao espectador apenas algumas imagens possíveis advindas da “leitura” do diretor e/ou do ator (sufocando assim as do espectador), ou uma interpretação tatibitate, que se prenda à literalidade do conteúdo e resulte em gestos previsíveis e banais (meros simulacros). Nathália não cai em nenhum deles, ufa!, e nos permite preencher os espaços vazios com nossa própria imaginação.
Naquele Paiol Literário de que participou, Bartô fez uma reflexão muito interessante: “Acho que o leitor é tão criador quanto o escritor. O leitor cria muito. É o que o Umberto Eco fala — a estrutura ausente na obra. Você gosta de uma obra não pelo que está escrito, mas pelo lugar que ela o levou a pensar. Isso é muito interessante. Michel Foucault fala que o que lemos não é a frase que está escrita. Lemos o silêncio que existe entre as palavras. É ali que a literatura se faz”. Pois Por Parte de Pai me conduziu até Guaxupé, cidade do sul de Minas onde meu pai nasceu e eu passei muitas de minhas férias de infância. Lembrei-me de certos cheiros e paisagens, de causos que escutava quando criança, de conversas no alpendre e até da batida do relógio da sala da casa de minha avó. E, enquanto assistia à peça, fazia minha viagem atemporal por memórias misturadas – as de Bartô, as de Nathália, as do menino-narrador e as minhas.
POR PARTE DE PAI. De 22 a 25/5, qua. a sáb. 21h. Teatro Aliança Francesa: R. General Jardim, 182, Vila Buarque, tel: 3017-5699, ramal 5602. Gênero: Drama. Duração: 60 min. Classificação: 12 anos. Ingressos: R$ 20. Onde comprar: na bilheteria (abre 2h antes) ou, com taxa, pelo tel. 4003-1212 e pelo site ingressorapido.com.br.