A flor que brota da náusea

As Graças: Eliana, Juliana, Vera e Daniela.

Fazia tempo que não passeava pelo Parque Jardim da Luz. Ao longo do último ano, nas vezes em que circulei pela região, sempre apressada ou talvez demasiado prudente, evitei cruzá-lo. Fazia o itinerário metrô–meu destino–metrô. Ontem, um sábado frio e nublado, tive a oportunidade de caminhar lentamente pelas rotas do parque, prestar atenção em sua configuração – o coreto, a Casa de Chá, o canteiro de rosas (sem rosas), o ponto do antigo bonde… –, observar as pessoas que circulavam por ali e, principalmente, ouvir as vozes que povoam o local, mesmo quando impera um aparente silêncio. Os espaços guardam, sim, registros que vão se tornando invisíveis ou olvidados com o passar do tempo. O Parque da Luz, como é conhecido, também tem segredos e histórias; são essas narrativas que impregnam o lugar, fragmentos de tantas vidas em passagem, que constituem a essência do tocante e delicado espetáculo Marias da Luz, da companhia As Graças.

O Parque da Luz existe desde 1798 e acompanhou as transformações urbanísticas de São Paulo. Foi inaugurado como Jardim Botânico ainda na época que o Brasil era colônia, virou jardim público em 1825 e finalmente se tornou parque na década de 1870. Foi se consolidando como um espaço de lazer e de encontro para os habitantes da cidade. A proximidade com a Estação Ferroviária da Luz, aberta ao público em 1901, ligando Santos ao interior, fez do parque um ponto obrigatório de circulação para aqueles que chegavam ou partiam de trem. Ao longo do século 20, o local sofreu com o descaso do governo em vários períodos. Tornou-se um espaço degradado. O processo de restauração se iniciou no ano 2000 e revelou aspectos desconhecidos do parque, como o aquário, uma estrutura projetada por um engenheiro e paisagista francês em 1858, na época do império.

>> Testemunhos reais

E que Marias são essas? É sabido que o Parque da Luz se tornou ponto para prostitutas. A maioria delas tem cerca de 40 anos ou mais. Discretas, ficam sentadas nos bancos esperando os clientes. Essas mulheres são parte da história do parque. Têm suas próprias histórias, todas elas. As Graças passaram cerca de um ano e meio no local, em um projeto de ocupação, apresentando peças de seu repertório, promovendo saraus e, principalmente, escutando os frequentadores ocasionais e habituais do espaço. Daí surgiu Marias da Luz.

Quatro mulheres se cruzam no Parque da Luz; têm origens diferentes e pertencem a épocas distintas. Em comum, relatos de perdas. A nordestina Marivânia (Juliana Gontijo) há muitos anos procura a pequena Maria, sua filha que estava sentadinha num dos bancos e desapareceu; a jovem e sonhadora Mariana (Daniela Schitini) chega a São Paulo de trem, em 1912, a fim de se encontrar com o noivo judeu; a simpática e despachada Maria Pequena (Eliana Bolanho) anda sempre por ali, pois trabalha como prostituta; e a fotógrafa Marileide (Vera Abbud) registra os transeuntes, não importa se no passado ou no presente, lembrando os lambe-lambes que circulavam pelo parque em seu período de apogeu. Baseada em depoimentos reais de quase uma centena de mulheres, a bem-amarrada dramaturgia de Daniela Schitini e Nereu Afonso da Silva nos oferece personagens críveis e carismáticos, gente como a gente, figuras cujos dramas atravessam o tempo e coincidem naquele local.

* Marivânia (Juliana Gontijo) busca sua filha desaparecida há anos.

O texto tem fluência, coloquialidade na medida exata; ganha potência graças às Graças, intérpretes experientes e talentosas. Esquecemos que são atrizes atuando; a empatia vem da naturalidade com que se apresentam e dialogam entre si. Não há uma preocupação em explicar tudo, linearmente; afinal, nem tudo precisa ser dito com palavras. A opção por determinado sotaque, por certa dicção, o modo de andar e a postura já revelam muito sobre um personagem. Assim, sobra espaço para que nós, público, lhe imaginemos uma existência, o que fez antes, como seguirá depois. Interessante constatar que as personagens sobrevivem ao fim do espetáculo; aliás, parecem transcendê-lo.

Peças realizadas fora da sala estão sempre sujeitas a riscos maiores, a imprevistos e a interferências do ambiente. É preciso ter sensibilidade para saber como e quando incorporar intervenções alheias e tirar proveito disso; daí vêm o frescor e a vivacidade de um espetáculo feito em lugar não-convencional. Mesmo com os deslocamentos e com a constante mudança de condução de cena, a montagem tem ritmo. A direção de André Carreira, em seu primeiro trabalho com As Graças, propõe um interlocução entre ambiente e personagens; como ele mesmo disse, numa conversa pós-espetáculo, não se trata de uma peça já pronta levada para o parque, pelo contrário; sua encenação foi construída considerando o pulsar e as peculiaridades do próprio Jardim da Luz. Sim, isso fica evidente na apropriação do espaço pelas atrizes; elas se movimentam de maneira bastante precisa, mas espontânea. O parque também tem o que contar!

Gostei também da suave trilha, que entrou na hora certa e não buscou concorrer com os ruídos do entorno. Afinal, o piado dos pássaros, o barulho de um helicóptero ou o charc-charc das pessoas que caminhavam sobre as pedrinhas fazem parte do espetáculo. Até as conversinhas dos transeuntes: “qué es esto, teatro?”, pergunta um imigrante, possivelmente boliviano. “Perder a filha é muito triste mesmo”, diz uma senhora. “Arranjaram um bonde de verdade”, divertiam-se dois rapazes com grande sacolas nas mãos, tirando fotos com o celular.

* Mariana (Daniela Schitini) descobre que o noivo a abandonou; no parque, encontra Maria Pequena (Eliana Bolanho), ao fundo.

>> O poder transformador da arte

Sou uma entusiasta do bom teatro realizado fora do palco. Gosto da permeabilidade que o caracteriza, das relações que estabelece com o público – quem vai para vê-lo, quem está apenas de passagem por ali – e de seu caráter democrático e inclusivo (falei um pouco a respeito no post A Praça é do Povo!). Gosto ainda mais quando a dramaturgia respeita as particularidades do espaço e absorve as vozes que o habitam. Quando revela o que há por trás das fachadas, embaixo das calçadas. Pode-se montar uma versão de tragédia grega, como Prometeu Acorrentado, a exemplo do que fez a Cia. São Jorge de Variedades em Barafonda; pode-se montar um texto contemporâneo como o de Marias da Luz ou Bom Retiro 958 metros, do Teatro da Vertigem. Qualquer que seja a opção, é importante não fechar os olhos para as camadas de realidade existentes.

A arte tem esse poder de ressignificar espaços, situações e vivências; oferecer novos prismas para fatos desgastados; revelar personagens e histórias ocultos sob o manto do esquecimento, ou da ignorância, ou do preconceito; e levar-nos a lugares desconhecidos de nós mesmos. A arte pode ser um instrumento não-panfletário ou militante, mas profundamente político, de transformação social. A arte tem o poder de romper paradigmas além da própria arte – pelo menos, é nisso em que acredito.

Queria pedir licença para uma breve partilha. A semana que passou me trouxe um turbilhão de emoções. Obviamente não sou indiferente às manifestações populares que vêm acontecendo em São Paulo. Na quinta-feira 13, me vi no meio do confronto que ocorreu na Rua da Consolação. Descia a pé, já que o trânsito fora interrompido no sentido Centro, a fim de assistir a uma estreia no Sesc, quando cruzei com um grupo grande de manifestantes. Bradavam “sem violência, sem violência” e caminhavam de modo pacífico. Os motoristas do sentido oposto aguardavam. Parei na esquina para telefonar a uma amiga e avisá-la que não conseguiria chegar a tempo. De repente, ouvi bombas e gritos, vi os jovens se dispersarem e correrem desesperados. Algo explodiu ao meu lado: meus olhos ardiam, não conseguia respirar direito, comecei a tossir. Desorientada pelo gás e pelo insistente zumbido das bombas, que pipocavam sempre muito próximas, corri também na tentativa de escapar dos ataques e encontrar abrigo. Senti medo.

* Vera Abbud interpreta Marileide, uma fotógrafa que circula pelo parque fazendo imagens dos transeuntes.

>> Cidade sem muros, cidade de todos

Desde então, lido com meu estarrecimento e com uma sensação de desamparo. Não sei ainda o que pensar de tudo isso. Evito radicalismos. Se eu já era uma defensora do nosso direito, como cidadãos, à nossa cidade, minha posição ficou ainda mais forte. Não consigo imaginar uma cidade que se preste apenas a ser repositório de gente, negando interlocuções e interações. Não consigo imaginar uma cidade em que as ruas, as calçadas, praças, os parques e todos os seus serviços públicos não possam ser de fato desfrutados por todos os seus habitantes. Todos, sem exceção. Espaços e serviços aproveitados, usados, usufruídos de fato, friso bem. Não consigo conceber uma cidade interdita e interditada. Uma cidade dividida por muros invisíveis, excludente, cega ao que ocorre fora dos bairros mais nobres. Por que deixamos a criminalidade sair dos limites? Por que deixamos o Estado e seus aparatos se tornaram novamente autoritários (se é que um dia deixaram de ser), porém com um verniz contemporâneo e roupagem democrática? Isso vem ocorrendo bem antes de 13 de junho.

Marias da Luz dá voz a quem, geralmente, não têm voz nem vez nesta cidade. Marias da Luz dá oportunidade a gente como o seu Jovenil, morador de rua, ver uma peça de teatro e sentir-se parte da cidade. Marias da Luz devolve poesia ao meu olhar sobre São Paulo, olhar este afetado tanto por uma inflamação decorrente do gás lacrimogêneo quanto por um certo desencanto em relação ao estado atual das coisas. As Graças, muito obrigada pela delicadeza e pela humanidade.

Até 7/7, sábados e domingos 16h. Duração: 60 min. Classificação: livre. Parque Jardim da Luz: R. Ribeiro de Lima, 99, Praça da Luz, s/n, Metrô Luz, Bom Retiro. A peça começa nas proximidades do coreto e da Casa de Chá, no centro do parque. Grátis.

* O ônibus da companhia As Graças, usado no projeto Circular Teatro, faz as vezes de trem em "Marias da Luz".