A vida como ela é

Nas últimas semanas, viajei a dois países pelos quais sou apaixonada (e nos quais já estive, por mais de uma vez, em longas jornadas repletas de aprendizados): México e Turquia. Mas não precisei enfrentar salas de embarque, pegar avião ou usar passaporte. Tanto no cinema quanto no teatro, tive a sorte de me deparar com duas obras que conseguiram captar, muito além da superfície, um flagrante tanto do estado das coisas quanto do estado de espírito de seus cidadãos, um recorte preciso e profundo dos temas que permeiam a atualidade dos dois países.

* Cena do longa existencialista "Era Uma Vez na Anatólia": onde a antiga e a nova Turquia se encontram.

Era Uma Vez na Anatólia (2011), do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan, traz um uma pequena comitiva formada por policiais, militares, um promotor, um médico e os dois suspeitos de um crime em busca do corpo de um homem assassinado. Durante uma noite que parece eterna, em três carros, eles percorrem os campos da Anatólia, nas entranhas da Turquia, à procura do lugar exato em que o cadáver foi enterrado. A escuridão oculta os detalhes da paisagem, dificultando a tarefa. Além disso, um dos acusados alega que estava bêbado quando tudo aconteceu, por isso não tem certeza da localização do corpo.

A banalidade da trama é apenas aparente; seus pequenos desdobramentos são extremamente reveladores, e as breves interações entre os personagens se mostram significativas e permeadas por reflexões existenciais. Os cadáveres – metafóricos e reais – precisam ser enterrados com decência, só assim a história pode avançar. A cena da autópsia sintetiza o dilema que perpassa todo o filme: a Turquia ancestral, das tradições, superstições e povoados agrícolas, convive com a Turquia de traços e modos contemporâneos, que pleiteia um lugar de importância no mundo. Mas não sem fricção, e nem sempre com explicações lógicas. Belos planos, interpretações vigorosas. Do mesmo diretor, também gosto muito de Usak (2002).

* O drama de muitos imigrantes clandestinos norteia "Amarillo", da mexicana Teatro Línea de Sombra (crédito: Blenda).

Já a companhia mexicana Teatro Línea de Sombra trouxe a São Paulo Amarillo, apresentado anteriormente durante a Ocupação Mirada, festival promovido pelo Sesc São Paulo. Trata-se de um espetáculo-instalação, uma performance de tons políticos que flerta com o teatro documental. Temos um fio condutor: um homem deixa a família e sua cidade de origem para tentar atravessar a fronteira entre México e Estados Unidos. Busca uma sorte melhor do outro lado: oportunidades de trabalho e de juntar algum dinheiro. Diz à mulher que vai voltar, mas não volta nunca mais. Assim como ele, centenas de imigrantes ilegais – principalmente mexicanos e centro-americanos – desaparecem na fronteira. Muitos são capturados; outros tantos morrem no árido deserto que se interpõe entre eles e a almejada América. Somem, portanto, deixando rastros.

Rastros concretos e simbólicos, propõe Amarillo (amarillo de amarelo, a cor do deserto; Amarillo da cidade texana homônima, destino sonhado do homem mexicano). Os desaparecidos deixam sapatos, vestidos, adereços. Deixam sonhos, suspiros, dignidade. Deixam a própria identidade. Deixam um nome, uma voz, mãos calejadas, corações pulsantes. A quem pertence essa herança dos imigrantes desaparecidos no deserto? Como reconstituir suas trajetórias por meio desse legado?

O homem ausente representa todos os homens e mulheres que cruzam clandestinamente a fronteira mexicana, enfrentando riscos e perigos em nome de uma ilusão (que pode virar sonho, que pode virar frustração). A mulher que fica são todas as mulheres e todos os homens que aguardam aquele que partiu prometendo voltar em condições melhores.

A dramaturgia é fragmentada, e os personagens testemunham suas ações ou as ações de outrem. A música não é meramente ilustrativa. O espetáculo explora muito bem a fisicalidade dos atores: afinal, o sonho depende do corpo para se concretizar; e é esse corpo que padece diante das agruras do deserto, é esse corpo que clama por água e descanso. Os objetos usados em cena – e que constituem uma espécie de instalação, que vai se adequando ao que é contado – são emblemáticos e por si só carregam histórias, sugerem narrativas: roupas, galões de água, lanternas, sapatos, sacos, areia, muito areia. À espreita, um personagem de tez rosada, cabelos e longa barba brancos, botinas e cinto com fecho chamativo, observa com cinismo o infortúnio de muitos.

De nada adiantaria uma linguagem ousada, apoiada em recursos performáticos e visuais, se a visão de mundo que orientasse o espetáculo reproduzisse clichês, fórmulas prontas, posturas conservadoras ou o discurso hegemônico. O Teatro Línea de Sombra faz coincidir forma e conteúdo: desafia o senso comum, a pasmaceira diante de um fato concreto e recorrente (a morte de imigrantes ilegais na travessia do deserto da fronteira estadunidense), com sua aproximação nada reverente ao tema, sem apelação sentimental nem caretice na montagem (que poderia “abrandar” o espetáculo, torná-lo mais digerível). Com isso, ganhamos nós, os espectadores.

Era Uma Vez na Anatólia e Amarillo não nos deixam indiferentes. Pelo contrário: provocam um certo mal-estar, que se mostra extremamente benéfico por nos despertar do torpor e da confortável ignorância na qual costumamos nos submergir.

* Os objetos que compõem o espetáculo carregam diversos significados e narrativas (crédito: Blenda).

Observação: Amarillo teve apenas duas apresentações em São Paulo.