Uma mulher e seus muitos mundos


**Ana Madureira em seu solo "CabraCega" (crédito de Diogo Bento).

Na brincadeira de cabra-cega, o participante de olhos vendados ganha o jogo se consegue tocar ou agarrar uma outra pessoa. Para isso, guia-se pela audição e tateia o mundo ao seu redor em busca da presença física de alguém. Qualquer pequeno movimento o coloca em estado de alerta. Em geral, o espaço físico é delimitado, dificultando a fuga ou o esconderijos dos demais participantes. Afinal, a graça está justamente no perigo iminente de ser pego pelo indivíduo com uma venda nos olhos.

No delicado espetáculo CabraCega, da atriz portuguesa Ana Madureira, vemos uma mulher que, embora sem vendas visíveis durante boa parte do tempo, escuta e tateia o universo em que se encontra. Entendemos que ela não se encontra no mesmo “presente cronológico” que nós, seus espectadores. Seu tempo é outro. A cena inicial é simbólica: presa numa escuridão muito particular, seguindo seus instintos de sobrevivência, ela se redescobre viva e dona de um corpo. Quem é ela? Não sabemos; talvez nem ela mesma saiba com exatidão.

Ana Madureira desenvolveu esse espetáculo como convidada da Cia. Circolando. Com sede na cidade do Porto, a companhia apresenta suas criações como “um teatro dançado que habita as paisagens do sonho, um teatro próximo da poesia, que traz histórias libertas de toda a lógica narrativa”. E completa: “histórias que não pretendem oferecer um sentido, mas despertar todos os sentidos… com imagens, músicas, cheiros, emoções…”. Imagino que, como se trata de uma linha de investigação, algumas performances sejam mais bem-sucedidas que outras, tenham maior ou menor apelo junto ao público e que resultem mais ou menos experimentais. Assim, a companhia parece acolher espetáculos que não se guiem por uma unidade dramática clássica, mas que explorem outras possibilidades cênicas, pautadas pelos sentidos (como sensações) construindo um sentido (como significado).

CabraCega não tem um texto falado, embora a personagem diga certas frases – bastante significativas, aliás – em um ou outro momento. Portanto, não se trata de um monólogo. Aproxima-se muito da performance e do teatro gestual, em que os movimentos e os gestos são os motores da narrativa e contam a história. Nenhum deslocamento é ao acaso; a partitura corporal deve ser muito limpa e precisa, carregada de intenções claras (leia a sequência de posts O Gesto Essencial). A atuação de Ana tem plasticidade e fluidez; percebemos claramente a alternância de estados que rege a personagem, como se ela passeasse por suas sombras e claridades, encontrando instantes de luz e lucidez e outros de profunda inconsciência. Dentro de si, toca o amor, toca a selvageria, toca o medo, a frustração e o desejo. Aquela mulher que emerge em cena é, na verdade, várias mulheres. Ou várias fêmeas, ou vários femininos talvez. Tem um lado profundamente primitivo, quase Lilith – como uma aranha em eterna tessitura de sua teia ou uma serpente rastejante. Tem também uma face romântica, repleta de frescor e picardia, com uma leveza esfuziante: será ela Maria, ou Psiqué, ou Julieta?

A personagem brinca de cabra-cega consigo mesma. Roça suas memórias, resvala em suas latências, projeta futuros que talvez não vinguem. Tenta agarrar alguma persona mais definida, mas só desfia novelos que brotam dentro de si mesma. O cenário sugere ambientes diversos, concretos ou simbólicos: um tapete de grama, uma porta antiga, um varal de roupas. A trilha sonora joga um papel importante, ressaltando estados anímicos e ajudando a criar atmosferas.

O espetáculo me recordou vagamente os filmes do espanhol Julio Medem, em particular de Caótica Ana (2007), cuja protagonista carrega em si traços e histórias de muitas mulheres, míticas ou reais. Lembranças próprias ou alheias se misturam no espaço e no tempo, fazendo de Ana uma figura errante em sentido literal e metafórico. Ela é ela, ela é outra, são muitas Anas, quase infinitas. De todas as películas de Medem a que assisti, esta é a de que menos gosto. Acho irregular e por vezes confusa. Mas aprecio o modo com que o cineasta filma suas personagens femininas, principalmente nos ótimos longas Os Amantes do Círculo Polar (1998) e Lucia e o sexo (2001). São figuras vigorosas e sensuais, cientes de seu poder e de sua fragilidade e muito abertas a descobertas e riscos. A personagem que Ana Madureira põe em cena tem muito da vivacidade e da beleza das mulheres criadas por Medem e igualmente se lança numa busca existencial profunda.

“Estás aí? Estás? Onde?” – olhos vendados, mãos estendidas. “Quem és?”

A resposta nunca é definitiva.