A praça é do povo!

* Cena de "Barafonda", da Cia. São Jorge de Variedades.

Há alguns textos poéticos ou em prosa que me remetem à adolescência, período de descobertas literárias e ímpetos revolucionários. Um deles é O Povo ao Poder, poema de Castro Alves, com o qual travei contato no primeiro ano do ensino médio, outrora chamado de colegial. Seus versos ecoavam dentro de mim, fazendo todo o sentido: “A praça! A praça é do povo/Como o céu é do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor”.

Anos se passaram, outros poemas e poetas me arrebataram, mas aqueles versos de Castro Alves continuam a soar tão contundentes. “A praça é do povo/ Como o céu é do condor.” Não consigo conceber uma cidade que não pertença a seus cidadãos e que, de um modo sutilmente cruel ou explicitamente excludente, lhes seja interdita. Tampouco acredito que a solução para o bem-estar coletivo passe pelo encasulamento individual, no qual tenhamos que viver sob a proteção de muros imensos e carros blindados. Ou por uma assepsia forçada e artificial do espaço urbano, baseada no embelezamento de fachada, na expulsão de “indesejáveis” e em revitalizações que não incluam os moradores locais, mas visem apenas a interesses alheios e externos.

Talvez pareça uma obviedade, mas a cidade se torna nossa quando nos apropriamos efetivamente dela. Na adolescência e na juventude, tive uma vivência de bairro bastante intensa; me sentia parte da comunidade do Bixiga, onde morava e participava de constantes atividades – voluntárias, recreativas, educativas… Como trabalho de conclusão de curso na faculdade, escrevi uma grande reportagem sobre as transformações socioeconômicas, culturais e arquitetônicas pelas quais passava o Bixiga no fim dos anos 1990, na virada do século 20 ao 21, tomando-o como microcosmo da cidade.

Sou paulistana; alterno momentos de grande identificação com a megalópole e outros de profunda náusea e desilusão. Já morei fora e agora estou de volta, reacostumando-me a rotas e rotinas. Obviamente lamento a insegurança que nos assombra, a insuficiência dos meios de transporte coletivos, o descaso popular e governamental que paira sobre tantas áreas urbanas, a sanha imobiliária que põe abaixo edifícios históricos e outras tantas deficiências que nos impedem de usufruir da cidade. Lamento ainda mais por São Paulo assistir com tamanha passividade à degradação física e moral de tantos de seus habitantes e por se mostrar tão inóspita em vários momentos. Ora, a cidade também é seus moradores, e somos igualmente responsáveis pelo ambiente em que vivemos.

Não tenho carro; gosto de circular pela cidade de ônibus (quando não tenho pressa nem há trânsito) e, principalmente, a pé; caminho, caminho muito e descubro bairros, histórias e, principalmente, pessoas. Tropeço em calçadas rachadas, às vezes sou surpreendida por motoristas apressados, identifico portinholas faceiras em meio a blocos duros de concreto. Vejo feiúras e belezas, enquanto celebro a coragem daqueles que desafiam a passividade urbana: os hortelões urbanos, os artistas de rua, os manifestantes conscientes, os bike anjos etc.

>> O teatro toma as ruas

Por isso, comemoro o fato de que diversas companhias teatrais têm criado espetáculos que usam as vias paulistanas como palco e cenário, incorporando transeuntes, fachadas, comércio local e até os veículos que teimam em avançar em meio ao elenco. Propõem, assim, uma dramaturgia que dialoga tanto com a história quanto com as questões atuais da metrópole. Percorrem espaços muitas vezes esquecidos pelo poder público ou trajetos considerados deteriorados e nada poéticos. Realidades e tensões normalmente ocultas se revelam diante de espectadores atentos, e um novo olhar sobre a cidade se estabelece.

É o caso de Barafonda, da Cia. São Jorge de Variedades, que acontecia ao longo de dois quilômetros no bairro da Barra Funda. O cortejo, composto pelos sete atores da companhia e outros 18 convidados – incluindo quatro músicos –, partia da Praça Marechal Deodoro, no cruzamento da Avenida Angélica com a Rua das Palmeiras, seguia por toda a Rua Lopes de Oliveira (onde está a sede do grupo), atravessava o viaduto sobre a linha do trem da CPTM e terminava na Praça Nicolau de Morais Barros. “A obra realizada na rua tem uma dramaturgia aberta a interferências e ao diálogo. Ressignifica a vida prosaica e descortina um outra cidade”, comentou a atriz Patrícia Gifford, responsável pela coordenação geral de Barafonda.

Destaco aqui outros grupos com pesquisas e trabalhos bastante pertinentes que fazem do espaço urbano inspiração e arena para suas criações:

* Cena de "Dentro é Lugar Longe", da Trupe Sinhá Zózima.

TRUPE SINHÁ ZÓZIMA

Até 12 de junho, o grupo apresenta Dentro é Lugar Longe num ônibus que parte do Terminal Parque Dom Pedro e circula pelo centro de São Paulo. A peça propõe uma viagem poética, evocando memórias de infância e lembranças permeadas por alegrias e perdas, encontros e separações. São cinco atores, dirigidos por Anderson Maurício. A trupe, fundada em 2007, montou anteriormente Cordel do Amor Sem Fim (2007), seguida por Valsa nº 6 (2009) e O Poeta e o Cavaleiro (2010), todas tendo o ônibus como palco e a cidade, seu cenário. sinhazozima.com.br

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TEATRO DE NARRADORES

Durante dois meses, a companhia encenou A Resistível Ascensão de Arturo Ui, do alemão Bertold Brecht, num trecho da rua Treze de Maio, entre as ruas Manuel Dutra e Santo Antônio, na Bela Vista, onde mantém sua sede. Doze atores e 20 técnicos contavam a história do êxito do gângster Arturo à frente do cartel da couve-flor, em alusão à ascensão de Adolf Hitler na Alemanha nazista. A peça deu seguimento à pesquisa iniciada com Cidade Coro, Cidade Fim, Cidade Reverso, de 2011, que mesclava depoimentos reais de moradores do Bixiga com uma dramaturgia que punha em xeque as transformações socioeconômicas da cidade a partir dos anos 1970. Antes, o grupo – formado há mais de 15 anos – já havia realizado ocupação artística de edifícios na Penha e no Bom Retiro, sempre em diálogo com o entorno. teatrodenarradores.com.br

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PESSOAL DO FAROESTE

​Também com 15 anos de trajetória, a companhia investiga tanto narrativas do imaginário popular brasileiro quanto temas ligados à história e às dinâmicas da região central de São Paulo – como a peça Cine Camaleão: Boca do Lixo, de 2011, um retrato ao mesmo tempo irônico e glamouroso da Rua do Triunfo (onde o grupo tem sua sede) dos anos 1970 e 80. Na época, o local abrigava importantes produtoras cinematográficas e era reduto da marginalidade paulistana. O novo espetáculo, Homem não Entra, traz um faroeste ambientado na São Paulo dos anos 1950 que tem, seu ápice, numa cena feita na rua à meia-noite. pessoaldofaroeste.com.br

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OPOVOEMPÉ

O grupo surgiu em 2005 com a perspectiva de olhar os fluxos, interações e dinâmicas que compõem a cidade. Daí a realização de pelo menos sete intervenções artísticas em pontos diversos de São Paulo. Com Aqui Dentro, Aqui Fora, de 2008, a companhia experimentou montar o mesmo espetáculo numa sala fechada e nas ruas, na forma de um percurso pela região do Vale do Anhangabaú. Em O Farol, de 2012, o público sai de um hotel cinco estrelas na Marginal Pinheiros e toma um trem, rumo à estação Presidente Altino, na periferia. Durante o trajeto, escuta uma gravação em mp3 que sugere reflexões sobre a relação com o tempo na metrópole. opovoempe.org

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TEATRO DA VERTIGEM

Até abril deste ano, o grupo encenou Bom Retiro 958 metros pelas ruas do bairro homônimo, trazendo à tona as histórias escondidas sob as fachadas – da herança dos imigrantes judeus aos coreanos e bolivianos que movimentam a economia local. O espetáculo resultou de dois anos de pesquisas e envolveu, a cada apresentação, cerca de 40 pessoas, entre atores, técnicos e equipe de produção. Ao usar espaços inusitados em suas montagens, como uma igreja, um hospital ou um presídio, a companhia – que completa 21 anos – propõe percepções novas e instigantes para o ambiente urbano. teatrodavertigem.com.br


* Cena de "Bom Retiro 958 metros", do Teatro da Vertigem.