
* Maria de Medeiros e Laura Castro como Vera e Tânia, mãe e filha, em peça "Aos Nossos Filhos" (crédito: Irene Nóbrega).
Em tempos de exercício concreto da liberdade de expressão, parece que há um paradoxal recrudescimento de certos preconceitos e, como consequência, tentativas de impor a toda a coletividade visões de mundo cultivadas por grupos específicos. Na terça-feira 18 de junho, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que permite aos psicólogos propor serviços que ofereçam “tratamento e cura da homossexualidade”, contrariando uma resolução do Conselho Federal de Psicologia. A proposta ficou conhecida como “cura gay”; é provável que sucumba antes de ir a plenário, já que seguirá ainda para duas comissões. Mas já gerou uma significativa reação popular, que saiu das redes sociais e, em São Paulo, foi para as ruas na noite da sexta-feira 21. Em cartaz desde 7 de junho no Sesc Santana, a peça Aos Nossos Filhos tangencia o tema ao colocar, frente a frente, as convicções de uma mulher homossexual, casada, prestes a experimentar a maternidade, e as de sua mãe, uma ex-guerrilheira que passou por três divórcios.
Tive a oportunidade de entrevistar pessoalmente as atrizes Laura Castro e Maria de Medeiros, que atuam em Aos Nossos Filhos, e conhecer o ponto de vista delas a respeito do espetáculo. Não vou me estender muito aqui em relação aos bastidores da peça, porque já contei alguns detalhes na matéria que fiz para o site de Época São Paulo. O texto é da própria Laura e a direção, do experiente João das Neves. A música Aos Nossos Filhos, de Ivan Lins e Vítor Martins, foi a base para a construção da dramaturgia, que se passa numa única noite. A inspiração veio da trajetória de Laura, casada há seis anos com a produtora Marta Nóbrega e mãe de José, de 1 ano (gerado por Laura); Rosa, de 3 (gerada por Marta) e Clarissa, de 4 (adotada).
Aos Nossos Filhos tem, como eixo a relação entre a advogada Tânia (Laura) e sua mãe, a psiquiatra Vera (Maria). Existe afeto entre elas, mas também incompreensão mútua. Afinal, são mulheres muito diferentes, com trajetórias de vida e convicções bem distintas. Assim, além do natural conflito de gerações, há também um embate muito claro de ideias. Tânia é homossexual e está casada com uma mulher, fato pouco aceito por Vera. Naquela noite, Tânia traz uma notícia: vai se tornar mãe. A alegria que a notícia a princípio desperta na psiquiatra logo se dissipa quando Tânia revela que é a companheira, e não ela, quem está grávida. Vêm à tona cobranças, acusações, remorsos.
Embora o argumento seja pertinente e a peça conte com atuações corretas (Maria de Medeiros se sai bem; tem naturalidade na interpretação de uma mulher mais velha e se apropriou com graça do sotaque brasileiro), a dramaturgia se enfraquece com os conflitos repetitivos e com a reiteração de ideias. Além disso, há algumas opções de direção que, ao menos para mim, não foram convincentes. O uso de projeções, especialmente nas cenas do “e-mail”, em que há um corte temporal claro – quando a jovem Tânia, no início de sua vida amorosa e sexual, escreve uma mensagem à namorada –, me pareceu desnecessário e ineficaz. As imagens ao final, recuperando o passado do Brasil, funcionaram um pouco melhor, mas tampouco fariam falta se não aparecessem. Os momentos em que as atrizes cantam trechos da música de Ivan Lins à capela também me soaram deslocados e sem densidade. Os personagens entram e saem dessas cenas sem qualquer mudança de estado, sem indicar qualquer salto narrativo.
>> Fragilidades do texto
No entanto, a fragilidade maior é mesmo do texto. Não se trata de uma dramaturgia panfletária, porém o aspecto militante está ali, se fazendo presente por meio da insistência da legitimidade das opções de Tânia. Quando pensamos que a conversa entre mãe e filha terá outro rumo, trará um aprofundamento, revelará uma camada ainda oculta, Vera volta a repetir sua indignação, o que gera uma “nova velha resposta” de Tânia e retornamos ao ponto de partida. O texto vai e volta, mas não avança. O personagem de Vera termina por ser mais interessante e redondo, na medida em que apresenta contradições e alguns segredos – embora a informação da pesquisa sobre as crianças com HIV, por exemplo, tenha soado irrelevante, apenas jogada como mera nota de rodapé, uma vez que não teve impacto algum na trama. O personagem de Tânia é plano e se torna previsível na medida em que o espetáculo se desenrola; a partir de determinado momento, apenas volta a dizer, de modo distinto, o que já disse. Daí a sensação de que a peça dura mais do que deveria: porque já sabemos o que vem a seguir.
Durante a entrevista, Laura afirmou: “Só fui escrever o texto quase um ano depois. Relutei muito, cheguei a preparar umas cinco páginas de argumento e pensei em chamar um dramaturgo. Mas, quando convidei o João das Neves para dirigir a peça, ele disse que aceitava, desde que eu a escrevesse. Revelou-se uma decisão acertada: o texto era exatamente o que eu queria dizer, era disso que eu precisava falar.” Nada mais legítimo do que levar uma inquietação adiante; me parece que esse primeiro movimento precisava, de fato, vir de Laura. Porém, senti falta de que houvesse um segundo leitor para esse texto, um olhar atento que pudesse afinar a estrutura formal da dramaturgia a fim de deixá-la mais fluente e consistente.

* Em determinados momentos da peça, as atrizes cantam à capela trechos da música "Aos Nossos Filhos", de Ivan Lins (crédito: Irene Nóbrega).