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Uma infância nada ingênua

Postado em: 24 de junho de 2013 por: Maria Fernanda Vomero

* Marcos de Andrade faz Tochtli, um menino que é filho de um grande chefão do narcotráfico mexicano.

Na sexta-feira passada, como boa parte dos brasileiros – imagino –, conversava com um amigo sobre as manifestações que tomaram conta do país. Falávamos sobre como continuar escrevendo a respeito de atividades culturais na cidade sem ignorar o que estava acontecendo no Brasil. Há obras que, independentemente da roupagem, trazem abordagens e temas tão conservadores ou alienantes que, em vez de propiciar o diálogo ou a reflexão, acabam por confirmar estereótipos, comportamentos excludentes ou aspectos lamentáveis do sistema sociopolítico. Quem acompanha esse blog sabe que acredito na arte como um poderoso instrumento de transformação – sem panfletarismo ou manipulação ideológica, vale frisar – e na responsabilidade dos artistas diante de suas criações. Nossas opções dizem muito sobre quem nós somos. E uma peça ou um filme podem ser inspiradores sem necessariamente trazer histórias edificantes, denúncia de atrocidades ou fins apoteóticos. Sensibilidade e inteligência, contudo, são fundamentais.

Com esse estado de espírito, fui assistir a Festa no Covil, monólogo baseado na obra homônima do mexicano Juan Pablo Villalobos, interpretado por Marcos de Andrade e dirigido por Mika Lins. A adaptação do livro foi feita pela própria Mika e por Ana Saggese. O menino Tochtli, filho de um chefão do narcotráfico mexicano, conta a própria história. Algumas pessoas dizem que ele é muito precoce, já que conhece várias palavras difíceis. Na verdade, trata-se de um truque: todas as noites, o garoto lê o dicionário e assimila novos termos; “patético”, “pulcro”, “sórdido” e “fulminante” foram suas descobertas mais recentes. Também falam que Tochtli é engraçado; talvez por sua grande coleção de chapéus. Ele não tem mãe – mas não chora como um maricas por causa disso. Vive num palácio cercado por muros altos e vigiado por capangas do pai. Raramente sai dali e não brinca com garotos de sua idade. Tem aulas com Mazatzin, um cara culto, escritor frustrado, que parece saber muito dos livros e pouco da vida. Mas foi o professor quem apresentou ao menino as histórias do império do Japão e da guilhotina francesa, que o deixaram tão fascinado. O grande desejo de Tochtli é ganhar um hipopótamo anão da Libéria.

Ótimo texto, excelente atuação e direção precisa: mais um exemplo de que um teatro de qualidade não precisa de um sem-fim de artifícios. A adaptação foi bastante generosa com o cativante livro de Villalobos (editado pela Cia. das Letras) e acertou ao manter tanto a essência do narrador-menino quanto sua construção discursiva (um dos grandes trunfos do texto literário, que se manteve no teatral). Mesmo sendo interpretado por um ator adulto, Tochtli não é infantilizado e, em nenhum momento, a interpretação de Marcos ou a direção de Mika caem na caricatura ou no estereótipo. Há algo muito belo nesse personagem: uma espécie de infância perdida, mas retida, ou talvez vivida às avessas, à revelia. Um menino feito grande pelas circunstâncias, mas ainda totalmente menino.

>> Sagacidade & doses de inocência

Tochtli não é um garoto ingênuo, manipulável, pelo contrário; revela-se sagaz e, em determinados momentos, eu diria que chega a ser também bastante mordaz. Aprendeu a estar numa realidade sem certos julgamentos morais – e sabe que precisa crescer mais para descobrir determinados segredos. Se lhe faltam estofo e maior compreensão das coisas, isso se dá porque igualmente lhe faltam chão e mundo. Mas mantém ainda doses de inocência e ternura. Seu exercício mais constante talvez seja recriar, simbolicamente, tudo o que vê e escuta naquele palácio de tantos quartos e um zoológico particular; assim, sua infância se torna mais suportável e menos tediosa.

Marcos constrói Tochtli nos pequenos gestos, no jeito de olhar, na entonação da voz – e, volto a repetir, sem puerilidades forçadas e inúteis. Não há um adulto falando por uma criança, mas um olhar de criança a desvendar um universo adulto – universo este bem cruel e violento, aliás. A luz de Caetano Vilela sugere uma leitura interessante; a sombra do personagem está quase sempre em cena. Ora maior, ora menor que ele. Ora é o menino que fica retido na infância impossível, obrigado a agir com mais entendimento do que é capaz; ora é o discurso de gente grande materializado na voz infantil que ecoa pelas paredes do palácio e as tinge.

O cenário de André Cortez se desdobra literalmente em vários cômodos, e é interessante notar que, assim como as paredes cenográficas, os elementos narrativos igualmente vão e vêm, desencaixam e reencaixam-se para adquirir sentidos novos ao longo do espetáculo. No fim das contas, Festa no Covil sintetiza uma espécie de rito de passagem, cujo ápice acontece justamente numa festa no covil. A cena final é emblemática. Tochtli terá de aprender velozmente outras palavras ­– e talvez não mais no dicionário, mas na prática mesmo.

Eis uma peça que toca em temas tão sórdidos de um jeito tão pulcro e nada patético. Com sensibilidade, inteligência e humor na exata medida. Saí do teatro com a grata sensação de que valeu a pena ter estado lá e voltei às ruas com o sentimento de que há tanto, tanto a ser feito…

Até 30/8, qui. e sex. 20h. Gênero: Monólogo. Duração: 60 min. Classificação: 12 anos. Sesc Consolação: R. Dr. Vila Nova, 245, Consolação, tel. 3234-3000. Ingressos: R$ 2,50 (trabalhador no comércio ou de serviço matriculado) a R$ 10. Crédito: Diners, Master, Visa. Débito: Cheque Eletrônico, Maestro, Redeshop, Visa Electron. Onde comprar: no Sesc Consolação (seg. a sex. 12h/22h; sáb. 10h/21h e dom. 16h30/18h) ou qualquer unidade do Sesc.

* Adaptação do romance "Festa no Covil", do mexicano Juan Pablo Villalobos, a peça traz temas sórdidos abordados de forma pulcra.

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Este post foi publicado em: Críticas & notas, Monólogo, Primórdios com as Tags: Juan Pablo Villalobos, Marcos de Andrade, Mika Lins por: Maria Fernanda Vomero. Arquivado em: Link permanente.

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