
* Washington Luiz, Paulo Marcello e Clóvis Gonçalves se revezam nos diferentes personagens do provocador espetáculo "Anatomia Woyzeck" (crédito: João Caldas).
O dramaturgo alemão Georg Büchner (1813-1837) morreu de tifo aos 23 anos, mas deixou uma obra vigorosa, com inquietações bastante lúcidas e atuais, que refletem um pouco sua trajetória. Na Alemanha, foi perseguido por conta de suas convicções revolucionárias, e militância junto aos camponeses, o que o levou a se exilar em Estrasburgo, na França, e talvez cultivar um certo ceticismo político. Mais tarde, mudou-se para Zurique, na Suíça, onde concluiu seus estudos em medicina. O período do terror na Revolução Francesa, iniciado em 1792, é pano de fundo para A Morte de Danton (1835), um dos textos emblemáticos de Büchner. A peça que traz como protagonista o revolucionário George Jacques Danton, condenado à guilhotina pelo governo de Robespierre e atormentado pela lembrança dos crimes e atos sangrentos que ordenou – sempre em nome do ideal revolucionário – quando participava do Comitê de Salvação Pública. Herói trágico, confronta a própria consciência e se constata morto antes mesmo de ser executado: afinal, perdera a fé nos valores e princípios nos quais um dia acreditou firmemente. Uma adaptação desse texto está em cartaz no Sesc Consolação até 7 de junho: Danton.5, pelo Núcleo dos 5. Ainda não assisti.
Outra peça fundamental de Büchner é Woyzeck (1936/37), composta por fragmentos autônomos e aparentemente inacabada. A inspiração para a obra veio de um fato real: o assassinato de uma mulher por seu amante alemão, o soldado Woyzeck, em 1921. As cenas breves não têm uma ordem específica e, ao longo dos anos, acabaram sendo organizadas de modos distintos conforme as edições da obra. A peça traz como protagonista um proletário, o soldado Franz Woyzeck, que vive com Marie, mãe de seu filho, mas sem ter as “bênçãos” da igreja. Para ganhar um dinheiro extra, presta serviços ao Capitão e também ao Doutor, que o usa como cobaia para experimentos diversos – como se alimentar exclusivamente de uma dieta de ervilhas, por exemplo. Por conta disso, Woyzeck começa a ter alucinações cada vez mais frequentes. Alvo de chacotas, o soldado descobre que Marie está se envolvendo com o tamboreiro-mor do regimento. Transtornado, Woyzeck tenta tirar satisfações com o homem, é humilhado e, por fim, toma uma atitude drástica.
>> Anatomia Woyzeck, pela Cia. Razões Inversas
Para encerrar a trilogia “Anatomia Comparada” – uma investigação artística sobre a natureza humana e a violência social, composta também pelos espetáculos Agreste (2004) e Anatomia Frozen (2009) –, a Cia. Razões Inversas decidiu montar Woyzeck. Optou por não seguir nenhum dos ordenamentos sugeridos para os fragmentos. O processo de criação contou com uma oficina aberta na qual os participantes, ao lado do diretor Marcio Aurélio e dos atores, exploraram os diversos temas da obra e as possibilidades de encenação; em seguida, o espetáculo foi lapidado em nove apresentações realizadas em áreas de baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e alto IVJ (Índice de Vulnerabilidade Juvenil) da cidade de São Paulo, sempre seguidas por um debate mediado pelos atores e com a participação do público e de profissionais da área social.
O resultado é uma peça necessária, daquelas que não se podem perder. Atores competentes encenam um texto impactante, de uma pertinência absurda para os dias de hoje. Uma montagem enxuta, com foco no essencial: texto e intérpretes. Paulo Marcello, Washington Luiz e Clóvis Gonçalves revezam-se nos vários papéis. A cada fragmento, um deles assume um personagem diferente – Woyzeck, Marie, o Doutor… O cenário é simples: um tapete que simula um gramado e três microfones. Alguns poucos elementos cênicos são usados. O figurino é o mesmo para os três: terno completo e gravata borboleta, como se fossem três pregoeiros ou arautos contemporâneos. O restante é conosco – nós, os espectadores – e nossa imaginação.
Como os atores se alternam nos papéis, as características dos personagens e os “lugares sociais” que representam ficam em evidência. Embora cada intérprete empreste a própria voz e o próprio corpo para a figura da vez, todos os personagens têm seus cacoetes específicos – dos gestos ao modo de falar. Sabemos quem é Woyzeck ou Marie, independentemente se, naquela cena, é Paulo e Clóvis que os fazem, ou Washington e Paulo, por exemplo. Merecem aplausos o ótimo trabalho corporal e vocal dos atores e a direção de movimento. Além disso, o desenho cênico é bastante depurado; o posicionamento dos intérpretes se mostra muito bem pensado: eles parecem se deslocar num tabuleiro invisível.

* O dramaturgo alemão Büchner inovou ao escolher como protagonista um proletário: o soldado Woyzeck (crédito: João Caldas).
Anatomia Woyzeck traz uma história de violência – e violência em sentido amplo. É chocante constatar como atitudes e discursos violentos se encontram tão entranhados na sociedade que, muitas vezes, nos parecem “normais”. Alguns devem ser [moralmente, economicamente, fisicamente, culturalmente, socialmente] massacrados para que outros se elevem – e tudo isso legitimado por discursos que falam do “homem de bem”, do “homem culto” e do “homem honrado”. Woyzeck não se encaixa em nenhum desses rótulos; é uma figura completamente desamparada, à margem, um joguete na mão dos demais. Age por instintos (como diz o Doutor), não tem virtudes (como diz o Capitão). Seu discurso é banalizado ou solenemente ignorado. Ele mesmo se ignora, não se leva a sério, posto que pobre e subalterno. Pouco sabemos sobre o que pensa, que opinião tem sobre as coisas. Quando julgado por seu crime, é condenado e executado. A sociedade lava as mãos; ninguém tem nada com isso, ora. O culpado precisa ser punido, não precisa? E basta.
Büchner não emite juízo moral sobre este ou aquele personagem nem oferece atenuantes ou elementos incriminatórios; os personagens são o que são. O contraste que emerge da sucessão de fragmentos naturalmente cria sentidos que transcendem o que vemos concretamente em cena. Ao final, a montagem da Cia. Razões Inversas para o texto do alemão se revela perturbadora. E provocadora. Gostei da opção de começar com o fragmento da feira, em que o charlatão de uma tenda qualquer exibe um macaco, depois um cavalo, elencando comparações grotescas com o ser humano. E apreciei mais ainda a escolha daquela cena que traz a parábola sobre um menino órfão como fecho de uma narrativa dura e cruel, mas tão humana.
ANATOMIA WOYZECK. Até 30/6, sex. e sáb. 21h, dom. 20h. Centro Cultural São Paulo: R. Vergueiro, 1000, Metrô Vergueiro, tel. 3397-4002. Gênero: Drama. Duração: 60 min. Classificação: 14 anos Ingressos: R$ 10 (dia 31/5, R$ 2). Onde comprar: na bilheteria, que abre duas horas antes do espetáculo.