Deixe em paz meu coração

* André Capuano (Jasão) e Georgette Fadel (Joana) protagonizam uma das mais belas tragédias à brasileira. (Crédito: Zeca Caldeira).

A atriz Georgette Fadel provavelmente não se lembrará, mas há pouco mais de uma década – em 2002, para ser mais precisa – participei de um curso livre de teatro no Tusp dado por ela. Éramos muitos, não me recordo ao certo: quarenta, cinqüenta alunos? No ano anterior, havia feito o ótimo curso oferecido pelo TUCA, coordenado pelo Pablo Moreira, com uma turma enxuta e comprometida. A quantidade de participantes me incomodava, a troca com os demais era muito superficial e a dispersão, grande, mas aguentei firme por causa de Georgette. Além de se revelar uma profissional apaixonada por seu trabalho, muito consciente da necessária combinação entre técnica, talento e disponibilidade, a atriz me surpreendeu positivamente por seu jeito humano e humilde. Entre um exercício e outro, partilhava pequenas inquietações e anedotas de seu cotidiano. Guardo na memória uma vez em que falava sobre commedia dell’arte, máscaras e afins, e o assunto foi parar em relacionamentos. Em algum momento, ela disse algo a respeito da relação amorosa, mais ou menos assim: sempre toparemos com pessoas interessantes e atraentes em nossa vida; por isso, amar é confirmar diariamente nossa escolha por aquele ou aquela que está ao nosso lado. As palavras provavelmente foram outras, porém o teor era esse.

Pois foi com muito prazer que acompanhei a penúltima apresentação de Breviário – Gota D’Água, no CIT-Ecum, peça dirigida por Heron Coelho e protagonizada por Georgette Fadel há oito anos. Ao longo desse período, diversos artistas passaram pelo elenco. E a atriz conquistou um Prêmio Shell em 2006. Trata-se de uma versão mais enxuta da célebre Gota D’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, inspirada na tragédia Medeia, de Eurípedes, e que teve Bibi Ferreira na primeira montagem, no finzinho de 1975 e início de 1976. A Medeia aqui é Joana, moradora de um conjunto habitacional carioca, a Vila do Meio-Dia. O marido Jasão a abandona, assim como aos dois filhos, para se casar com Alma, filha do rico empresário Creonte. Além do conflito passional, há também uma questão social: Creonte, dono dos imóveis da vila, quer lucro a qualquer custo – ainda que isso signifique o endividamento progressivo dos moradores. Desgostosa e indignada com a traição do ex-companheiro e com a sanha exploradora do empresário, Joana prepara uma vingança.

>> Catarse & poesia

O espetáculo que vi em 19 de maio foi catártico, inebriante. A simplicidade do cenário, apoiado apenas em poucos e essenciais elementos, e a opção pelo formato de arena contribuíram para a aproximação e a cumplicidade da plateia. E não foi somente Georgette, como Joana, quem brilhou; todo o elenco esteve vibrante, entregue a seus papéis – com destaque a André Capuano, ótimo como Jasão. A versão de Heron Coelho preserva boa parte das falas e diálogos em versos, como no original de Chico Buarque e Paulo Pontes, e explora a fluência das rimas, sua naturalidade, e especialmente o aparente indizível que só a poesia consegue expressar. As canções executadas ao vivo entram sempre no momento e no tom certos. Trata-se de um espetáculo repleto de alma. Sim, alma. Sua força não está na grandiloquência nem na superprodução, em efeitos pirotécnicos ou trilhas ruidosas e ininterruptas, pelo contrário. O vigor dessa montagem de Breviário – Gota d’Água reside em seus atores, inteiros em cena, e no texto, que preserva uma atualidade impressionante.

O drama de Joana permite diversas leituras. Passa por sua doação, como mulher, a um projeto de casal que não vingou. Ela fez apostas altas, que resultaram inúteis e lhe deixam cicatrizes e vazios. Quando o companheiro vai embora, ela não tem trabalho nem meios de pagar os altos juros das mensalidades da casa. Mas fica com duas crianças que dependem integralmente dela. Ela sai da relação enfraquecida e exasperada, portanto. Jasão, por sua vez, experimenta uma ascensão social veloz por conta do imediato sucesso de seu samba Gota d’Água. O casamento com Alma representa uma possibilidade de afastar-se de vez da vida de privações e dificuldades que experimentou até ali. Terá como sogro o ardiloso Creonte, homem não mede esforços para aumentar seu próprio patrimônio. Perde um inimigo, ganha um aliado – mas qual é o preço a pagar? Vale a pena?

O amor seria o grande culpado? Ou a grande vítima? Numa das passagens mais tocantes da montagem, Jasão diz à Joana que a deixou por esgotamento, cansaço de ter de viver sempre em alta voltagem, de se submeter à passionalidade e a voracidade dela. Joana, então, lhe diz para olhar em volta: ele, na verdade, deve estar cansado de sua gente, uma gente que transcende problemas e dificuldades com ganas e energias tamanhas. (O embate entre Georgette e André é contundente, de uma beleza agressiva e cruel.) Se não há mais espaço para o amor, se o amor é de pouca valia diante de um mundo pragmático e materialista, se os juros e as dívidas só tendem a crescer e a massacrar esperanças e esforços, esse amor precisa desaparecer. Por isso, a drástica decisão de oferecer os filhos em sacrifício e de sacrificar-se. É esta a vingança.

A peça termina, e ficamos ali embargados e atônitos. Ecoando em nossos ouvidos, o samba de letra doída: “Deixe em paz meu coração /Que ele é um pote até aqui de mágoa./ E qualquer desatenção, faça não./ Pode ser a gota d’água…”

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Haverá apenas mais uma apresentação de Breviário – Gota D’Água no CIT-Ecum, com algumas mudanças no elenco. Mas Joana será interpretada pela última vez por Georgette Fadel, em sua despedida derradeira do personagem.

Dia 26/5, dom. 15h. CIT-ECUM: Rua da Consolação, 1623,  Metrô Paulista, tel. 3255-5922.