
Otávio Martins no monólogo Córtex, que tem direção de Nelson Baskerville: discurso fragmentado (Foto: Divulgação)
Quando os espectadores começam a ocupar seus lugares, o homem já está no palco. Ele parece sereno, mas alerta. Ora se encontra ao lado da cama, ora caminha em direção a uma das estranhas árvores que compõem o cenário. Veste um terno claro, no mesmo tom da saia de bailarina e da meia-calça. Aonde vamos? O público continua a chegar. Os ruídos remetem ao campo: seria um sítio? Madrugada, talvez? E aquele microfone ali na frente: essa história se endereça a quem?
As luzes se apagam, e o homem desata a falar. Sua mulher desapareceu misteriosamente. Mas como ela poderia deixar a cama assim, sem mais nem menos, se há anos se mantém dependente por conta de uma enfermidade que aos poucos lhe foi minando os movimentos? Fragmentos de lembranças vão e vêm. Cinco minutos atrás, cinco anos atrás. O discurso desse homem não é coeso: às vezes, revela uma urgência implícita, como se lhe faltasse o ar e sua voz fosse desaparecer a qualquer instante; em outros momentos, plácido e gentil, faz uso consciente de suas palavras, como se as escolhesse com precisão cirúrgica. Ele nos convence a acompanhá-lo ao sítio, ao apartamento, à sala de concertos. Passamos da manhã à noite, da agonia à culpa e da posição de testemunhas à de cúmplices com igual rapidez. Afinal, quantos personagens há nesta história?
Em Córtex, ator Otávio Martins volta a encenar um monólogo – sua atuação-solo em A Noite Antes da Floresta, de 2006, havia sido bastante elogiada. E, mais uma vez, confirma seu talento em preencher o palco com uma presença cênica potente e uma interpretação repleta de nuances. O texto do dramaturgo Franz Keppler (autor também de Camille e Rodin, ainda em cartaz), propositalmente fragmentado, oferecia o desafio intrínseco de ser o discurso de um homem também em frangalhos – o marido em pânico, o amante dedicado, o principal suspeito do sumiço da mulher, um indivíduo angustiado etc. E Martins cumpre o papel com galhardia. A direção é de Nelson Baskerville (da premiada Luís Antônio, Gabriela), que consegue imprimir ritmo a um espetáculo naturalmente tenso – e denso. A intrigante cenografia sugere um ambiente surreal, no qual imagens de vídeo – reflexos do que se passa pela mente do protagonista – são projetadas.
Sonho ou realidade? Verdade ou mentira? Essa dúvida permeia toda a peça e faz parte das inquietações do próprio protagonista. No fundo, nem ele mesmo está seguro do que conta. De tempos em tempos, uma citação ou outra de Anna Karenina, do russo Leon Tolstói, volta à memória. Foi o último livro que o homem leu para sua esposa, Ana. Os trechos dos quais ele se lembra falam de amor; um amor que transcende o tempo e a lógica, um sentimento que consegue suplantar a ausência e o vazio.
A presença do homem ainda é sentida no palco, mesmo depois que a peça termina. Lembrei-me daquele verso do Drummond: “você é o grito que ninguém ouviu no teatro e as luzes todas se apagam”. Ele ainda está lá, de algum jeito, vestido com seu terno claro, a saia de bailarina e meia-calça, buscando respostas impossíveis e juntando fiapos de lembranças cada vez mais puídas.
CÓRTEX. Até 4/11, sex. 20h, sáb. 17h e 20h, dom. 19h. Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), R. Álvares Penteado, 112, Centro, tel. 3113-3651. Metrô Sé. Duração: 75 minutos. Classificação: 14 anos. Gênero: drama. Ingressos: R$ 6. Onde comprar: na bilheteria (ter. a dom., 9h/21h). Estacionamento: R$ 15 por cinco horas (Estapar: Rua da Consolação, 228 – Edifício Zarvos, tel. 3256-8935). bb.com.br/cultura