MEUS DIAS COM CLARICE – dia #B

(Leituras inventivas, às vezes reinventadas, de um processo criativo)

DIA B

Caminho em direção ao Metrô Vergueiro. Brinco com o texto de Clarice, o texto que carrego na memória (será que decorei direitinho?). Repasso em silêncio: Ela estava com soluço. E, como se não bastasse a claridade das duas da tarde, ela era ruiva. Me distraio com os demais pedestres. Não vejo ruivo algum, são quase todos morenos. Um desses guardadores de carro passa por mim resmungando. Resolvo falar em voz baixa: Ela estava com soluço. E, como se não bastasse a claridade das duas da tarde, ela era ruiva. Na rua vazia, as pedras vibravam de calor: a cabeça da menina flamejava. Minha cabeça também flamejava: depois de uma noite gelada, uma manhã agressivamente quente. Muita gente no viaduto da Beneficência Portuguesa. Alguns encapotados até as orelhas, outros quase desnudos. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Caminhava em ziguezague, suportando. Manter o próprio ritmo de passadas numa calçada cheia gente, indivíduos imprecisos e falíveis como eu, às vezes é um ato de ousadia – ou de petulância, de acordo com o ponto de vista. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. O rapaz me olha, com estranhamento. Uso óculos escuros, daqueles bem grandes. Volto a pensar: viaduto globalizado. Camelôs de diversas origens. Passo por imigrantes provavelmente bolivianos e seus produtos estendidos sobre um lençol no chão. Antes vendiam echarpes típicas, coloridas e chamativas, agora são essas blusas feiosas (na minha humilde opinião, é claro), encontradas aos montes na 25 de Março. Têm mais clientes. E, como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento em momento. Desvio de um senhor muito lento, quase esbarro num rapaz magro, de suéter azul. Os camelôs seguintes são africanos e vendem bugigangas: relógios, capas para o celular, recarregadores. O que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Eu e a menina ruiva, que acolhi dentro de mim. Eu e a 23 de maio abarrotada de carros. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Porque não há mais bondes, talvez, embora existam ainda camelôs nordestinos, denunciados pelo sotaque, que vendem DVDs piratas e frutas. Um rapaz fala: você gasta muito com cigarros. Inspiro fumaça. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Espirro. E entro no metrô.

Detalhes de duas pinturas do austríaco Gustav Klimt: "Beethoven Frieze" sobre "Árvore da Vida".

Detalhes de duas pinturas do austríaco Gustav Klimt: “Beethoven Frieze” sobre “Árvore da Vida”.