O jogo do poder e seus sacrifícios

Acompanhei avidamente as primeiras eleições diretas pós-ditadura. Ainda não podia votar – tinha 14 anos –, tampouco compreendia muito bem os meandros da política, das composições partidárias, da tão falada e celebrada democracia. Mesmo assim, com certa ingenuidade e muito ânimo, eu partilhava daquele sentimento popular de vitória: por fim, diziam todos, podemos escolher nossos representantes! Poucos anos depois, ainda ingênua e empolgada (me parecia muito importante “participar” ativamente da história do país), estive nas passeatas pelo impeachment de Fernando Collor de Mello.

As histórias que cercavam o ex-presidente Collor, sua família, seus colaboradores e correligionários pareciam parte de uma bem-armada trama política. Segredos, ações na surdina e denúncias vinham à tona, especialmente sobre o esquema de corrupção no governo, articulado pelo empresário Paulo César Farias, tesoureiro de campanha de Collor. Até que PC e sua namorada, Suzana Marcolino, foram encontrados mortos na casa de praia dele, no litoral norte de Maceió. Na noite anterior, o casal havia jantado com o então deputado federal Augusto Farias, irmão de PC, naquela mesma casa. O primeiro inquérito apontou crime passional; Suzana teria matado PC e se suicidado, segundo laudo de peritos alagoanos e de um importante legista na época ligado à Unicamp. Contudo, inúmeras falhas de investigação provocaram dúvidas sobre a versão oficial. Um segundo laudo foi realizado, desta vez comandado por um especialista da USP; pairaram dúvidas sobre o suicídio de Suzana. A hipótese mais provável era de duplo homicídio. Teria sido queima de arquivo?

Carlos Morelli como Paulo: sacrifício e aceitação das regras do jogo. (Foto: Claudinei Nakasone)

Carlos Morelli como Paulo: sacrifício e aceitação das regras do jogo. (Foto: Claudinei Nakasone)

 

A morte de PC Farias, em 1996, nunca foi satisfatoriamente explicada. Em 2013, um júri popular absolveu os seguranças que faziam a guarda de PC Farias da acusação de homicídio. Por outro lado, ao admitir que o casal fora assassinado, o júri afastou de vez a tese do suicídio de Suzana. A atmosfera turva que até hoje cerca o caso comprova que, quando se trata de poder político, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. Isso vale também para a morte de Celso Daniel, então prefeito de Santo André, em 2002. Ele e o empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, tinham saído de uma churrascaria em São Paulo numa Mitsubishi Pajero, quando foram perseguidos e cercados por criminosos que estavam em três carros. O prefeito foi retirado do veículo à força; Sombra afirma que a trava e o câmbio da Mitsubishi não funcionaram. O corpo apareceu três dias depois, com marcas de tortura e tiros, numa estrada próxima à Rodovia Régis Bittencourt. Para a Polícia Civil, o prefeito foi confundido com um comerciante pelos criminosos. O Ministério Público, contudo, defende que o caso teve motivação política – Celso Daniel teria descoberto um esquema de desvio de recursos e parecia disposto a denunciá-lo.

>> Renúncia, desapego, sacrifício

Ao assistir à peça Abnegação, escrita por Alexandre Dal Farra e co-dirigida por ele e por Clayton Mariano, esses dois casos me vieram à mente. O espetáculo não faz menção direta ou específica a qualquer figura ou situação definida. Acompanha, na verdade, os bastidores de um jogo político – qualquer um, todos eles, pouco importa. Pode ter sido inspirado nesse ou naquele caso, porque, no fundo, se volta principalmente para a anulação do indivíduo como sujeito em prol de um projeto de grupo aparentemente satisfatório em termos materiais (dinheiro, benesses, bens, cargos, fama etc.) para todos. O indivíduo deixa de ser ele mesmo, portanto, para se tornar parte de uma engrenagem meticulosa e rentável, embora jamais isenta de falhas. Há regras, e elas devem ser seguidas sem grandes debates; por isso, a recompensa é gorda. Não há necessariamente amizade; os laços beiram uma cumplicidade sórdida, uma dependência às vezes  ingrata. É preciso manter-se sempre calibrado na engrenagem, pois o deslize pode ser sinônimo de descartabilidade imediata.

Abnegação trata, então, de abnegação – segundo o dicionário, “ato ou disposição que se caracteriza por um desprendimento dos próprios desejos ou necessidades em prol de uma pessoa, causa ou princípio; renúncia; altruísmo”. O espetáculo confirma o talento e a ousadia da companhia Tablado de Arruar ao encenar temas espinhosos e atuais. A peça anterior do grupo, Mateus, 10, já abordava uma faceta mais específica da abnegação: a renúncia da vontade própria para servir um ideal religioso, uma entrega consciente ao fundamentalismo e, no exercício do poder sobre um rebanho iludido, a constatação do vazio espiritual e do condicionamento a práticas não muito diferentes daquelas seculares e severamente criticadas.

As recompensas parecem valer a pena; mas o preço pela "abnegação" é alto. Em cena, Vinícius Meloni e Alexandra Tavares (Foto: Claudinei Nakasone).

As recompensas parecem valer a pena; mas o preço pela “abnegação” é alto. Em cena, Vinícius Meloni e Alexandra Tavares (Foto: Claudinei Nakasone).

 

O espetáculo atual vai além; incorpora rupturas temporais, propondo talvez uma sensação de espiral na qual queda e ascensão são igualmente vertiginosas e cruéis. O que é causa, o que é consequência? O que veio antes? Os fatos se ordenam sozinhos; afinal, mudam os fulanos, mas as práticas e as engrenagens continuam as mesmas. No início da peça, está em curso uma reunião de caráter sigiloso, em algum lugar afastado – um sítio, talvez –, na qual figurões da política têm assuntos importantes a tratar. Encontram-se ali macacos velhos e recém-admitidos no “clã”. Tudo é muito duvidoso, ambíguo e inconcluso; os diálogos não explicam necessariamente muita coisa. Algumas pistas escapam lá e cá: “governador”, “campanha”, “acidente”, “cheque”, “valores”, “Santo André”, “sindicato”, “voz rouca”. Explodem gestos passionais, carregados de impaciência – mas uma impaciência quase automática, nada sentimental. Todos ali têm seus interesses, o rabo preso, pequenas ou grandes vaidades, ambições variadas.

>> Cadáveres e assombrações

Os outros atos da peça reverberam os ecos daquela reunião. Há ganhos materiais, mas há morte, há fantasmas. Sacrifícios, portanto, de distintas ordens e acompanhados por culpa e culpados. As explicações não são evidentes ­– nem para os próprios personagens, que parecem fichas dentro de um jogo contínuo, nem para os espectadores, que são transformados em testemunhas involuntárias de atos questionáveis. O cadáver não é só humano; é também político, moral. Indica a falência de um projeto partidário, de um ideário coletivo, quase até de uma ideologia. Porque aquela engrenagem não depende apenas de abnegações, empresários e doações de campanha, desvios de verbas ou acordos tácitos, para funcionar; precisa de votos, precisa dessa massa indefinível chamada eleitorado. E o eleitorado, se talvez não exija detalhes de um programa político, espera determinados posicionamentos, certas escolhas, discursos específicos. O eleitorado quer saber de que lado o tal candidato se encontra.

O elenco – Alexandra Tavares, André Capuano, Carlos Morelli, Vinícius Meloni e Vitor Vieira – está muito bem . Gosto especialmente de Capuano e Morelli, do balanço entre exacerbação descontrolada de um e o cinismo do outro. A encenação joga com situações absurdas e excessivas, quase sempre verborrágicas, o que contrasta com o aspecto realista e bastante sóbrio dos espaços – aliás, esta é outra característica que aproxima Abnegação de Mateus, 10. Os espaços são bem definidos e condicionam as ações que neles acontecem, quase como se os personagens fossem obrigados a agir de determinado modo por estarem naquele cenário e não em outro. A violência – física, moral, autodestrutiva – perpassa toda a peça. No fim, há tédio e esgotamento. Não há saída nem fuga. Só assombrações.

O uso dos tablados móveis e o aproveitamento do espaço igualmente me agradaram.  A dramaturgia desafia o espectador-testemunha; enreda a plateia em fios invisíveis e cortantes. Não oferece uma trama para ser entendida, mas para ser desenrolada. Acho, como também havia achado em Mateus, 10, que se a peça tivesse uns minutos a menos – sem prejuízo dos silêncios e pausas –, poderia ser ainda melhor. Há uma ou outra passagem mais arrastada por conta de redundâncias, discursivas sobretudo.

No mais, o espetáculo nos recorda que, quando o assunto é política partidária, quaisquer expressões de ingenuidade ou comiseração são proibitivas. E provoca perplexidade ao nos chamar atenção para o fato de que a democracia, embora tenha seu caráter civilizatório apregoado aos ventos, pode se alimentar da barbárie. Há sacrifícios, renúncias, culpas e culpados, há abnegados. Mas ninguém é inocente. Nem os omissos.

ABNEGAÇÃO. Direção de Alexandre Del Farra e Clayton Mariano.  Até 30/3, sex. e sáb. 20h30, dom. 19h30. Centro Cultural São Paulo (Metrô Vergueiro).

Quantas concessões são necessárias para se fazer parte do clã? (Foto: Claudinei Nakasone)

Quantas concessões são necessárias para se fazer parte do clã? (Foto: Claudinei Nakasone)