O lado sombrio da humanidade

Quais as origens e os limites da crueldade humana? Diante da barbárie, as palavras sucumbem. As lágrimas sucumbem. O sentido, se há algum, se esvai. Tristeza e estupefação: como somos capazes? Diante da barbárie, brota caótica e desprevenida a urgência da responsabilidade: temos o dever de não esquecer; temos o dever de não repetir os atos abomináveis em qualquer circunstância; temos o dever de nos redimir.

Quando o mundo compreendeu o que havia sido o Holocausto, parecia impossível continuar a História. Era preciso recomeçá-la, carregando o trauma, a dor, a memória pesada e suja, as cinzas todas. Cito Cecília Meireles: “A vida só é possível reinventada”. Quando a humanidade compreendeu que se havia encontrado uma palavra para o inominável – “genocídio”, termo cunhado pelo jurista polonês Raphael Lemkin (1900-1959) em 1944 – parecia impossível que se cometesse nova barbárie. A ONU aprovara em 1948 a Convenção para a Prevenção e Punição de Crimes de Genocídio; havia, portanto, mecanismos legais internacionais para condenar os criminosos. Porém, e agora cito Carlos Drummond, “os homens não melhoram e matam-se como percevejos”. Como explicar Srebrenica, na Bósnia? E Ruanda? E outros massacres, em menores proporções, mas em igual intensidade de violência?

O ódio é primo-irmão da crueldade. E as razões de seu despertar não cabem totalmente na lógica da razão; é preciso admitir o componente de irracionalidade no agir do homo sapiens. No caso do “ódio coletivo”, se assim podemos chamar a motivação de um grupo social contra outro, as explicações racionais parecem ainda mais complicadas e insuficientes. O dramaturgo polonês Tadeusz Słobodzianek (1955) usou a arte para tentar investigar ou entender o massacre dos judeus na cidade de Jedwabne, na Polônia, em 1941. Estima-se que tenham sido mortos mais de 300 habitantes, todos eles de origem judia. Słobodzianek se inspirou, entre outras fontes, no livro Vizinhos (2001), de autoria do também polonês Jan Tomasz Gross. O escritor afirma, baseado em registros e documentos históricos do período, que os moradores não-judeus da cidade – com a conivência dos nazistas – foram os algozes de seus próprios vizinhos.

Nossa Classe acompanha um grupo de alunos poloneses ao longo de duas décadas a partir de 1925. Há meninos e meninas, católicos e judeus – o clima é de amizade e inocência. Mas o tempo passa; a Polônia se vê à mercê de um jogo de forças alheio: primeiro, cai nas mãos do exército de Stálin; depois, é invadida pela Alemanha nazista. O contexto sociopolítico provoca impacto nas relações entre os estudantes; os laços entre eles começam a azedar. Vêm à tona suscetibilidades e diferenças. A afirmação de si passa pela negação do outro: católico, comunista, nacionalista, judeu. Aquele grupo de amigos do tempo da escola já não se sustenta mais. A realidade trucidou a nostalgia. A ingenuidade infantil que permitia a boa convivência dá lugar agora às idiossincrasias adultas. E, em tempos de recrudescimento de identidades, o caráter, as convicções e os valores de cada um dos ex-estudantes emergem com veemência.

Maria Paula Lima e Felipe Calçada como a católica Zocha e o judeu Menachem, amigos de escola que se veem em lados opostos do conflito. (Foto: Ronaldo Gutierrez)

Maria Paula Lima e Felipe Calçada como a católica Zocha e o judeu Menachem, amigos de escola que se veem em lados opostos do conflito. (Foto: Ronaldo Gutierrez)

>> Lirismo e delicadeza

O texto, objetivo e nada apaziguador, gerou, nas mãos do diretor Zé Henrique de Paula, uma encenação que não se apega aos aspectos realistas-naturalistas, mas que também não deixa de se ater à realidade. Me explico: a montagem evita a literalidade, embora trabalhe com elementos cênicos concretos. Evoca, assim, aquele tempo da memória: tempo da releitura dos fatos, mas não da vivência desses mesmos fatos. Trabalha num registro a posteriori, deslocado da linearidade. Não se trata, portanto, de uma encenação documental nem de uma recriação fidedigna de um massacre. Mas da evocação de um estado de espírito, do espírito de uma época e de uma época pontuada por eventos díspares, porém interligados em cadeia. Tem lirismo e delicadeza.

Gostei muito do cenário (simples e alusivo) e dos figurinos, do uso do espaço e do desenho de luz. O uso simbólico de alguns elementos, como a árvore estilizada do canto esquerdo (a Árvore da Vida?) ou as máscaras de Stálin e de Hitler, me pareceu bastante inteligente. Słobodzianek pontua as cenas com poemas do polonês Marcin Wicha, sugerindo que os versos sejam cantados. A diretora musical Fernanda Maia compôs, então, uma trilha original seguindo as tradições de música eslava e judaica, para a qual usa instrumentação típicas das klezmer bands – violino, clarineta e acordeão. Tanto as canções quanto a trilha têm papel fundamental na encenação e funcionam muito bem, além do fato de serem emocionantes. Comovem sem manipular; a gente percebe que há sentimento e inteligência por trás das composições.

E por fim, mas não menos importante, a interpretação dos atores. Nossa Classe é resultado de uma oficina de montagem teatral do Núcleo Experimental, comandada por Zé Henrique e Fernanda Maia. Não acho que o elenco seja totalmente homogêneo, alguns brilham mais do que outros (independentemente das características de seus personagens), mas não há nenhum intérprete fora do tom. Os jovens atores demonstram energia, paixão e entrega. As marcações são precisas – é possível notar a existência de uma orientação muito clara e o cuidado na construção da cena –, mas isso não interrompe em nada a fluidez dos movimentos, das interações, dos diálogos… Fiquei impressionada com a defesa apaixonada que os intérpretes fazem de seus papéis; não há canastrices nem atuações burocráticas, ainda bem.

>> Opiniões exaltadas

A peça é impactante – e não só pelo evento que retrata, o massacre de Jedwabne. Nossa Classe faz um flagrante preciso do nascimento das intolerâncias, do recrudescimento de posições, da gradativa cegueira provocada pelo ódio, que por sua vez brota da ignorância e da insegurança. Confesso que fiquei um tanto abalada; assisti ao espetáculo logo na estreia, algumas semanas depois das grandes manifestações de rua no Brasil, quando circulavam opiniões exaltadas e polarizadas sobre os últimos eventos do cenário sociopolítico do país. Ora, assumir uma posição diante dos fatos não significa deixar-se levar por ânimos incendiários, baseados em convicções frágeis ou na defesa de bordões vazios.

Estive na Polônia em 2012. Poderia partilhar várias reflexões sobre as impressões que o país me trouxe, mas não quero me alongar; me detenho nos sentimentos que afloraram durante minha visita a Auschwitz-Birkenau. Fico comovida só de lembrar do que vi, ouvi e constatei enquanto caminhava pelos pavilhões, câmaras de gás e crematórios. Senti uma vergonha infinita de ser humana. A brutalidade que exala daquele lugar é chocante, acachapante. Sim, nós (humanidade) fomos capaz de perpetrar tamanha violência contra nós mesmos. Fomos – e ainda somos. Talvez o que mais me doa é justamente saber que ainda somos capazes de cometer crueldades imensas. Permitimos que inimizades, julgamentos e preconceitos aflorem sem qualquer senso crítico ou ponderação de nossa parte. Somos arrogantes e presunçosos na defesa de nosso ponto de vista. Negamos o outro para nos afirmar. E aí reside a pertinência de Nossa Classe: a peça nos lembra que todos podemos ser vítimas e algozes. E que o ódio funciona como pólvora: passível de explodir a qualquer momento.

NOSSA CLASSE. Até 15/9, sex. e sáb. 21h e dom. 19h. Gênero: drama. Duração: 80 min. Classificação: 16 anos. Teatro do Núcleo Experimental: R. Barra Funda, 637, Metrô Marechal Deodoro, tel. 3259-0898. Ingresso: R$ 20. Onde comprar: na bilheteria, que abre uma hora antes, ou, com taxa, pelo site compreingressos.com e pelo tel. 2122-4070. Estacionamento conveniado na frente do teatro: R$ 10.