Uma análise bastante subjetiva dos rastros deixados pela 1ª MITsp
A 1ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo começou para mim na quarta-feira 5 de março, quando me encontrei pela primeira vez com o encenador inglês Simon McBurney, cofundador e atual diretor artístico da companhia Complicite, e o designer sonoro Gareth Fry, além dos artistas que participariam do Intercâmbio Artístico, um dos quatro eixos previstos no evento. Pela primeira vez em terras brasileiras e recém-chegado à cidade, Simon disse naquela noite algo que repetiria nos quatro dias seguintes de workshop: “O que importa no teatro é o resíduo que deixa no público”. Afinal, segundo ele, o espetáculo ocorre na imaginação do espectador, que é quem organiza todos os elementos daquele universo no qual se encontra inserido. Diálogos, narrativas, gestos, deslocamentos, dança, luz, objetos, cenário, música, sons e até mesmo a respiração do ator, tudo compõe “esse mistério que é o teatro”. Encenador e atores podem querer dizer milhares de coisas em – e com – a cena, mas entre o dito e o compreendido/captado pela plateia há sempre uma lacuna.
Passados alguns dias desde o fim da MITsp, cuja programação de espetáculos aconteceu de 8 a 16 de março, reflito sobre o “resíduo” que a experiência deixou em mim. Poderia até arriscar algumas opiniões mais gerais, levando em conta as longas filas de espera para conseguir ingressos ou entrar nas salas, a oportunidade de ver obras de destaque na produção internacional contemporânea, a iniciativa de promover diálogos entre artistas, pesquisadores e espectadores etc., e resumir que a mostra foi um êxito apesar de alguns problemas de organização. Contudo, prefiro apoiar minhas análises nas impressões geradas pelas obras, pela participação no workshop e pela interação com o coletivo de críticos.

O artista inglês Simon McBurney, da companhia Complicite, durante o intercâmbio artístico “A criação cênica a partir de elementos sonoros”, ao lado do ator Luciano Chirolli e da tradutora e atriz Paula Souza Lopes. (Foto: Lígia Jardim/ MITsp)
E, assim como fez o ensaísta, sociólogo e professor Laymert Garcia dos Santos, durante sua participação num dos encontros dos Diálogos Transversais da MITsp, neste texto também recuso o lugar da crítica teatral e me assumo como espectadora atenta, inquieta, questionadora, o que for. Não consigo analisar uma peça isolando-a do contexto presente nem de minha experiência subjetiva ao vê-la. E permito sempre que minhas inquietações do momento – como mulher, cidadã, artista, jornalista, ser humano… – sejam absorvidas por minhas escrituras e assim incorporadas às reflexões. Por isso, tento escrever buscando possibilidades de diálogo cada vez mais amplas e abertas (obviamente, meu intento pode ser frustrado). E dispenso a frieza da linguagem.
A MITsp teve o mérito de trazer obras em consonância não só com as investigações estéticas e os questionamentos em voga nas artes cênicas na atualidade, mas também, e principalmente, com o espírito do nosso tempo. O evento acolheu espetáculos formalmente provocadores – lembrando uma frase do estudioso alemão Hans-Thyes Lehmann, autor de Teatro Pós-Moderno e Teatro Político, “a questão do teatro político não é só tratar de temas e de conteúdo políticos, mas é ter essa forma política”. Foram, portanto, peças de alta voltagem política, uma vez que desafiaram nossa percepção sobre assuntos aparentemente batidos e nos propuseram indagações pertinentes (algumas resultaram mais bem-sucedidas que outras). E mesmo quando a execução cênica ficava aquém da proposta – esta é minha opinião em relação à argentina Cineastas, por exemplo –, a força dramatúrgica se fazia notar.

A peça argentina “Cineastas”, de Mariano Pensotti, apresenta histórias simultâneas – embaixo, os dilemas criativos de cineastas; acima, o desenrolar de seus filmes. (Foto: Lígia Jardim/MITsp)
Muitos temas emergiram ao longo da mostra: a banalização e a mercantilização do sagrado, a inevitável decrepitude humana, a ascensão do consumo como religião, o abuso sexual como prática numa sociedade ainda machista, a opressão contínua perpetrada por sistemas políticos corruptos e autoritários, entre outros. Artistas e pesquisadores tiveram oportunidade de debater com o público, respectivamente, seus processos de criação e suas leituras das obras presentes na programação. No cotidiano teatral de uma cidade como São Paulo, um espaço de troca e debate tão frutífero como esse propiciado pela MITsp quase não existe. (Brevíssima digressão: então, teatro pra quê, teatro pra quem, teatro por quê?)
Não consegui assistir a todos os espetáculos – perdi o de Angelica Lidell, Eu Não Sou Bonita, uma pena!, e o De Repente Tudo Fica Preto de Gente, de Marcelo Evelin. Algumas peças me cativaram mais que outras; misturam-se, em minha avaliação, questões subjetivas e objetivas, é claro, além de afinidades com certas escolhas estéticas. Poderia reunir as obras do seguinte modo: (1) favoritas [a uruguaia Bem-vindo à Casa e a lituana Hamlet] ; (2) cativantes, mas não arrebatadoras [a turca Anti-Prometeu; a francesa Nós Somos Semelhantes a Esses Sapos… + Ali; a sul-africana Ubu e a Comissão da Verdade; a chilena Escola]; (3) impactantes, mas com ressalvas [a italiana Sobre o Conceito de Rosto no Filho de Deus e a espanhola Gólgota Picnic] e (4) dramaturgia boa, encenação insossa [a argentina Cineastas].

Os personagens de “Bem-Vindo à Casa”, espetáculo uruguaio de humor negro apresentado em duas partes; todas as sessões foram bastante concorridas (Foto: Lígia Jardim/ MITsp).
Bem-vindo à Casa, do Pequeño Teatro de Morondanga e direção de Roberto Suárez, e Hamlet, de Oskaras Koršunovas e a companhia OKT, são peças lúcidas e lúdicas, que tratam tanto de humanidade quanto da representação teatral, explicitando o jogo por meio do uso criativo e ousado dos elementos e dispositivos cênicos e apontando caminhos para a arte em tempos de aridez, opressão e barbárie. Esteticamente são muito bem realizadas. Ambas me comoveram – uma vez que me deslocaram de meu próprio senso comum – e me instigaram intelectualmente, por assim dizer. “Tudo se move”, repetia o inglês Simon McBurney durante o workshop, remetendo aos aprendizados colhidos com o francês Jacques Lecoq (1921-1999). “O teatro está inserido no tempo presente. Tudo no mundo é ressonância.” (Pena que o Complicite não teve nenhum espetáculo incluído na programação!)
Mudou algo na cidade depois desse turbilhão teatral? Caminho pelas ruas, sob um sol causticante, e me deparo com o caos ruidoso de sempre, metrôs abarrotados de gente, humores enviesados, injustiças gritantes, banalidades vendidas sem desconto e tempestades aquosas, opinativas, verborrágicas. Não, não mudou. Algo em mim, porém, mudou. Renovei meu estoque de perguntas e de inquietações, sinto que meu universo particular se expandiu e que alguns véus foram desfeitos.

O lituano Oskaras Koršunovas propõe uma leitura dramática e estética bastante provocativa para o clássico “Hamlet” (Foto: Lígia Jardim/MITsp).
O teatro transforma o mundo? O mundo transforma o teatro? Não sei responder essas perguntas grandes. Sei que também me olho no espelho e pergunto com frequência: quem é você?, quem é você?, quem é você?, como o Hamlet lituano. Que muitas vezes me sinto uma anti-Prometeu, presa a um tabuleiro e a movimentos pré-determinados, iludida por conquistas aparentemente grandiosas, mas em pleno cumprimento do dever. “Dever”? No tecido social, sob milhares de pães de hambúrguer insossos, convivem idealistas, que se juntam em “escolas de rebeldia”, e Ubus, cujos segredos fétidos mais dia ou menos dia vêm à tona. Somos bombardeados por imagens aparentemente sacras e inquestionáveis: cale-se, cale-se, cale-se. Con-su-ma, con-su-ma, con-su-ma. E, depois, su-ma! Atire a primeira granada quem não tiver pecado – e só ouvimos explosões, guerras e destruição, porque todos somos santos, e certos, e sábios, sempre.
E eis que, rodeados de merda, afundados em nossa própria merda, salvam-se os sapos, sapos de uma perna só, anjos caídos de um paraíso infernal criado à imagem e semelhança do homem, pelo próprio homem. A beleza resiste, de algum modo. Num dos dias do workshop, Simon nos propôs um exercício de escuta e confiança: em duplas, caminharíamos pelas ruas do Bom Retiro; um dos dois permaneceria todo o tempo com olhos fechados enquanto seria guiado pelo companheiro, apenas com o toque – no braço, nas costas, na mão –, sem o uso de palavras. Fui conduzida pela querida Paula Souza, nossa tradutora. Realizei uma viagem imagética por minha memória e imaginação. Terminei diante de uma cachoeira fantástica, em pleno Parque da Luz. Se isso não é vida, não sei o que é teatro. Se isso não é teatro, não sei o que é vida.

Conceitual e instigante, a peça”Anti-Prometeu” apresenta o homem preso a um tabuleiro controlado por um “deus ex-machina” (Foto: Marlon Marinho/MITsp).
* Leia, na página da MITsp, as críticas dos espetáculos produzidas durante o evento pelo coletivo formado pelos integrantes dos sites Teatrojornal, Antro-Positivo, Horizonte da Cena, Questão de Crítica e Satisfeita, Yolanda?.