O tempo que resta

Diversas vozes povoam o corpo imóvel de uma mulher. Dizeres que parecem dela, falas de outrem, discursos de tempos distintos – de ontem e de hoje, de um passado remoto e de um presente impossível, do agora –, mas todos reverberantes nas entranhas daquela mulher. Não, não: aquele corpo não está morto. Respira, ainda que de modo sutil, quase imperceptível. Apresenta pequenos espasmos. Parece pulsar com extrema discrição. A vida sobrevive – que paradoxo! – sob a forma de fragmentos de lembranças, disformes e desordenados. Ela está em coma? Talvez. Naquele momento, a mulher é seu corpo imóvel. Quando o corpo deixar de ser e encerrar seu ciclo, um pequeno mundo se calará. Tudo se reduzirá a silêncio e breu.

* Maia Piva em cena: tudo se passa em sua mente (crédito: Elenize Desgeniski). *

Esse é o fio condutor da peça Espasmo, escrita pela jornalista Gabriela Mellão e encenada pelo diretor curitibano Marcos Damasceno e pelas atrizes Maia Piva e Rosana Stavis. O desafio era evidente: como levar para o palco o minguar da consciência? E como explorar a polifonia do texto, seus avanços e retrocessos no tempo, os ecos e os esquecimentos, se toda a ação (física ou simbólica) se passa num corpo aparentemente inerte?

As escolhas de Damasceno são corajosas e remetem às pesquisas da companhia teatral que leva seu nome e existe há dez anos: uma encenação limpa e minimalista, um trabalho de interpretação minucioso e o intenso uso narrativo da luz e do som. Não há adereços no palco; o espetáculo começa na penumbra. Em cena, duas mulheres estáticas. Uma de frente para o público; a outra, de costas. Pouco a pouco, vamos esquecendo a presença física, digamos assim, dessa segunda mulher (Rosana Stavis). Concentramos nossa atenção naquela que se encontra no centro e cujo corpo nu reflete, rebate, absorve os focos de luz e as sombras (Maia Piva). É naquele corpo que tudo ocorre: um respiro, uma costela que se move, um mexer de olhos, um músculo suavemente tensionado, um suspiro. Os parcos e mínimos movimentos parecem imensos, essenciais. Toda a turbulência se passa internamente – só vemos seus reflexos nos sutis espasmos lá e cá. Aplausos para Maia; excelente preparação corporal. Sua atuação e sua presença são contundentes.

Contudo, nessa peça, o discurso também é importante. Aquelas vozes todas, de fontes diversas, no palco têm uma única origem. Como se fosse a consciência da personagem de Maia, Rosana dá cor e vida a fragmentos de diálogos, a falas dispersas, a pensamentos, àquilo que é ouvido e até àquilo que é sentido. Trata-se de um verdadeiro jogo, um quebra-cabeças sonoro que precisa ser montado com precisão. Afinal, ouvimos o fluxo de uma vida em despedida, sua última golfada. Aplausos também para Rosana por sua interpretação.

Estive na estreia, que tende a ser um dia de maior ansiedade para os artistas – imagino que, no decorrer da temporada, a montagem vá ganhando mais densidade. Senti falta de uma maior harmonia na entrada dos ruídos que fazem parte da trilha e um pouco mais de apuro no desenho de luz; faltou também trabalhar melhor o silêncio, dar-lhe mais consistência e importância (não um silêncio vazio, mas um silêncio cheio, pulsante). Ainda assim, o espetáculo é uma experiência sensorial estimulante. Gradativamente nossos olhos vão se acostumando ao escuro.  Nossos ouvidos se tornam mais acurados, e a respiração da plateia acaba por compor a cena também. Às vezes, a sensação que temos é que nossas falas internas podem ser escutadas, de algum modo, por aquela mulher em coma. Ou que ouvimos mais do que deveríamos. A quem pertence essa alucinação? Não ficamos indiferentes.

Até 7/6, qui. e sex. 20h (exceto dia 30/5, feriado). Gênero: Drama. Duração: 50 min. Classificação: 16 anos. Sesc Consolação – Sala Beta: R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 3234-3000. Ingressos: R$ 2,50 (trabalhador no comércio ou de serviço matriculado) a R$ 10.