
À frente da Cia. Pessoal do Faroeste, o diretor Paulo Faria realiza um trabalho de resistência ao criar espetáculos que dialoguem não só com a história da metrópole.
Paraense radicado em São Paulo há 23 anos, o dramaturgo, ator e diretor Paulo Faria revela-se apaixonado pela região da cidade que o acolheu. À frente da Cia. Pessoal do Faroeste, que completa este ano 15 anos de trajetória, realiza um trabalho de resistência ao criar espetáculos que dialoguem não só com a história da metrópole e do país mas também com o próprio espaço urbano. Um exemplo é a peça mais recente da companhia, Homem não Entra, em cartaz até 30/9, sempre às segundas às 20h, que, tem como contexto, o dia da promulgação do polêmico decreto governamental, que visava acabar com a chamada Zona Livre, área de prostituição no Bom Retiro. As prostitutas expulsas dali migraram para a região no entorno da Estação da Luz, que ficaria conhecida por nomes como Quadrilátero do Pecado, Boca do Lixo e, atualmente, Cracolândia.
“É tanta coisa que precisa ser levada aos palcos que não vemos sentido em fazer peças em que a cidade não esteja presente, principalmente onde estamos. A Rua do Triunfo tem uma das histórias mais fantásticas dessa cidade”, afirma. Recentemente, foi inaugurada a Ocupação Cultural Amarelinho da Luz, iniciativa que contou com a articulação e a curadoria de Paulo Faria. Dez coletivos artísticos, com propostas cênicas e audiovisuais em diálogo com a região da Luz, agora ocupam o edifício ao lado da sede da Cia. Pessoal do Faroeste e têm o compromisso de criar ações culturais que envolvam os moradores e a realidade local.
Na entrevista abaixo, Paulo fala sobre o projeto Ciclo de Olhares: Luz e Sombra e explica qual será a participação da Cia. Pessoal do Faroeste nas atividades do evento.
MFV: Como surgiu a ideia do projeto e a parceria com o Sesc Bom Retiro?
PF: No fim do ano passado, o Sesc me convidou, por conta do trabalho que desenvolvo com a Cia. Pessoal do Faroeste na região da Luz, para ser curador de dois projetos: um sobre um espaço de reflexão e construção de pensamento e outro que envolvesse a criação de uma estética que refletisse o primeiro e surgisse com base nele, simultaneamente. Propus uma curadoria compartilhada, na qual pudéssemos incorporar o processo de pesquisa da companhia, que compreende uma didática de encenação, com ciclo de estudos, palestras, oficinas – algo fundamental para os caminhos estéticos e a multiplicação dos temas, que em regra, tratam desta região, sua história e seu povo. Assim, tornaríamos o processo participativo, estabelecendo diálogo com o público e com a cidade. Daí veio a ideia de usar cartas de amor como ponto inicial para a dramaturgia de uma intervenção urbana, que será a soma de todas as partes desse projeto. O que será que a cidade pensa sobre a região da Luz? Será que existe um sentimento de pertencimento?
E por que o título “Luz e Sombra”?
Porque mencionamos a luz como metáfora e como imagem da região, mas tratamos da sombra, do que está no escuro, daquilo que não é visto. A Cia. Pessoal do Faroeste vem ao longo desses anos discutindo temas como eugenia, racismo, exclusão, envolvendo personagens que se encontram à margem, como os participantes de ocupações, negros, prostitutas, usuários de crack, entre outros. Quando você pede a alguém que conte uma história de amor sobre a região, não escuta necessariamente uma história de luz; por vezes, trata-se de um relato violento, sombrio. Queremos, portanto, também falar sobre esse mundo invisível. Quem somos hoje os moradores desta região? E o que a cidade sabe sobre esse moradores?
Qual o envolvimento da Cia. Pessoal do Faroeste?
Total. Este vai ser o primeiro trabalho em que os atores vão desenvolver sua dramaturgia isoladamente. A partir das 24 cartas selecionadas, eles se dividirão em células, dois a dois, num total de seis. No primeiro mês, dois dramaturgos, vindo das oficinas que realizaremos, se somarão aos atores para desenvolver os textos baseados nas cartas de cada “corifeu” [chefe do coro]. No segundo mês, dois encenadores, também vindos das oficinas, encenarão aquele texto com os corifeus. Por fim, a Cia São Jorge comandará os participantes da oficina de coro. Farei a supervisão dos processos, mas cada ator mergulhará em cada célula como criador e propositor. A equipe de produção também estará presente em todos os momentos. As oficinas acontecerão na própria Sede Luz do Faroeste, na Boca do Lixo.
Na sua opinião, qual a importância de um projeto como esse?
Fundamental. A iniciativa do Sesc foi maravilhosa. Na intenção de construir uma identidade nessa região – que é, a meu ver, plural, verdadeira síntese do termo “urbanidade” –, o Sesc Bom Retiro abre espaço para a rua, para ouvir, ver e sentir a rua. E chama um parceiro da região para juntos construirmos um ciclo de olhares sobre nosso entorno. Para a Cia. é uma possibilidade de descobrir outros caminhos em nossa pesquisa e continuar o mergulho no bairro, como escafandristas, revelando temas que fortaleçam o sentimento de pertencimento. A Luz é uma região apaixonante de São Paulo.

Ensaio da performance que será realizada nas ruas do bairro da Luz, uma das ações do Ciclo Luz e Sombra, promovido pela Cia. Pessoal do Faroeste em parceria com o Sesc Bom Retiro (Foto: Divulgação).
Você acredita que a arte pode contribuir para estabelecer uma nova relação com o ambiente urbano (a rua, o bairro, a cidade)?
Eu só acredito nisso. Aqui, na Luz, lidamos com temas polêmicos, como a Cracolândia ou a prostituição, sobre os quais paira o descaso ou o preconceito. A importância da nossa presença, mais do que falar sobre esses fatos, tem sido a de trazer a população de volta para região; ajudá-la a entrar em contato com seu dia-a-dia e a reconhecer a história que existe nesse lugar. Precisamos humanizar o debate sobre essa área, ocupada historicamente por artistas e também por marginais. O governo deveria facilitar a presença de artistas em regiões como a nossa; mas prefere criar repartições públicas e museus. Nós, da Cia. Pessoal do Faroeste, temos uma fome crônica pela cidade, por sua memória. É tanta coisa que precisa ser levada aos palcos que não vemos sentido em fazer peças em que a cidade não esteja presente. A Rua do Triunfo tem uma das histórias mais fantásticas dessa cidade. A arte é o espaço humano por excelência. O espaço da expressão criativa, o espaço político real. E isso nos interessa.
Como tem sido a repercussão das cartas de amor à região da Luz? Que descobertas você tem feito?
Há duas frentes na coleta das cartas: uma, por meio dos correios ou da entrega presencial no Sesc e aqui na nossa sede; a outra transforma os atores em escribas: eles escrevem cartas para os passantes. Isso aconteceu na Estação de Trem da Luz, por exemplo, e surgiram histórias fantásticas, como a de um homem que enriqueceu com gado e a de uma mulher que ditou uma carta de amor entre lágrimas, com a esperança de rever o amado. Ou ainda, a de uma boliviana, que, tendo seu bebê no colo, contou seu sonho de ser modista. Tem sido uma experiência encantadora!