Realidade ou ficção?, eis a senha

“Respeitável público!” Um tubarão inflável e teleguiado sobrevoa nossas cabeças e nos dá as boas-vindas com seus movimentos circulares. No palco, quatro atores executam ações triviais (ou seriam quatro personagens que simulam ser atores e executam movimentos bastante calculados, reproduzindo ações triviais?). A trilha cria uma atmosfera de picardia – e, talvez, de picadeiro –, as luzes permanecem acesas por alguns momentos ainda, os atores/personagens aceleram o ritmo; ora, estimada plateia, o espetáculo já começou.

A curitibana Cia. Senhas de Teatro trouxe a São Paulo, durante o Festival Brasileiro do Teatro, sua leitura para o texto Circo Negro, do argentino Daniel Veronese, um dos nomes mais importantes da dramaturgia contemporânea latino-americana [recentemente, o Espanca!, grupo de Minas Gerais, montou O Líquido Tátil, outra obra de Veronese, com direção dele mesmo]. Há quem identifique, entre as escolhas recorrentes do argentino, a presença de um realismo não subserviente, um realismo contaminado pelo humor ácido, quase melancólico, e por um registro entre o sinistro e o grotesco, além do flerte com a metalinguagem. A encenação – como tema e como forma, engrenagem – está sempre em xeque, mesmo quando não é o foco principal da narrativa. É como se Veronese propusesse um teatro em constante embate interno, um teatro-fênix, que precisa ser dissolvido ou desconstruído para que, em seguida e de imediato, se refaça, carregado de frescor – e de fissuras (para ser de novo implodido).

Escrito em 1996, Circo Negro é muito mais um roteiro de ações que um texto teatral nos moldes convencionais e foi pensado para ser trabalhado com bonecos. Faz parte da pesquisa de Veronese com seu grupo El Periférico de Objetos, criado em 1989, voltado ao teatro de animação para adultos. Como o nome diz, o interesse pelo “periférico” sempre guiou as criações da companhia, que, por sua vez, também sempre se colocou em posição periférica. Vale ressaltar que, se antes o que interessava ao diretor e dramaturgo argentino era quase que exclusivamente explorar os mecanismos cênicos por meio do uso de bonecos e da presença atores-manipuladores, gradativamente sua investigação artística passou a contemplar o trabalho com os atores-intérpretes. Por isso, me parece curioso que a Cia. Senhas tenha contrariado a indicação inicial do autor e montado Circo Negro apenas com atores de carne e osso (na perspectiva do Periférico, os bonecos eram igualmente atores, “os que atuam”), como se atualizasse as inquietações do próprio Veronese, segundo a produção atual dele. Curioso e estimulante.

Pois bem: depois que o tubarão inflável se recolhe aos camarins, os personagens/atores ou os atores/personagens interrompem o que estão fazendo, como se dessem conta de que estão no palco (qual mesmo? o da vida ou o do teatro?). Pequenos instantes de constrangimento. Ou de consciência. Vão até a beirada, inclinam-se para receber os aplausos. E eles vêm – mas não são nossos, da plateia ali presente. São aplausos ex machina. Ora, as palmas convencionam o fim de um espetáculo. Talvez o que venha a seguir seja, então, um não-espetáculo dentro do contexto da peça. Começa uma espécie de conferência ou aula sobre os segredos da representação: o que se deve fazer para encenar isso ou aquilo, como isso precisa ser feito. No teatro ou na vida? Instaura-se, portanto, o jogo entre realidade e ficção, mas não um jogo entre mundo real e mundo ficcional; trata-se da realidade e da ficção inerentes à própria obra – ou seja, o que corresponde à sua estrutura, o que parece fantasioso. A sensação de estranheza faz parte desse jogo.

A curitibana Cia. Senhas oferece uma leitura instigante para o texto do argentino Daniel Veronese ao montá-lo com atores – e não com bonecos (Foto: )

A curitibana Cia. Senhas oferece uma leitura instigante para o texto do argentino Daniel Veronese ao montá-lo com atores – e não com bonecos (Foto: Divulgação. )

Os momentos de “aula” intercalam-se com esquetes circenses, nos quais os mecanismos de manipulação (a hipnose, o adestramento) se tornam evidentes. Paira sempre uma dúvida sobre a figura do ator; quando ele funciona como títere de outrem e quando ele é senhor de sua própria interpretação. Assim, a Cia. Senhas é bem sucedida ao trabalhar com os limites entre o ator-manipulador e o ator-intérprete, ainda que não recorra aos bonecos. Por isso, o corpo tem papel fundamental; os gestos e os movimentos são tanto o motor da narrativa quanto a base da construção cênica. Do olhar ao caminhar de um ponto a outro, tudo significa. A preparação corporal e a direção de movimento se mostram excelentes. Os intérpretes Ciliane Vendruscolo, Greice Barros, Luiz Bertazzo e Rafael di Lari estão ótimos; são precisos no que fazem, sempre em sintonia uns com os outros, e mantêm vivo o jogo.

O desenho cênico contribui para o dinamismo e a fluidez do espetáculo. Nada sobra; tudo é enxuto e muito bem encaixado. Achei particularmente acertada a presença dos quadros com imagens dos atores ao fundo, no cenário. Em certos momentos, tive a impressão de que aqueles retratos cinéticos queriam me recordar dos outros personagens possíveis daqueles atores: eles mesmos, numa existência (virtual ou real), além daquele picadeiro. E gostei bastante da trilha sonora, responsável por ressaltar as diferentes atmosferas da peça.

O espetáculo me arrebatou, o que talvez me deixe minha avaliação menos imparcial, mas constato uma maturidade grande nessa montagem. Sua proposta não é simples, lida o tempo todo com desencaixes (de tempo, de espaço, de foco), e o grupo, sob direção de Sueli Araújo, cumpre com galhardia o desafio. Desconheço a trajetória da Cia. Senhas – é a primeira peça da trupe a que assisto –, mas, em conversa com o público depois da apresentação, diretora e atores contaram que a obra de Veronese veio ao encontro de certas inquietações com as quais eles já vinham trabalhando.

O ritmo e a qualidade da encenação são dois motivos consistentes para explicar o fascínio desse Circo Negro, mas existe algo além; há esse efeito que emerge à revelia do que se narra na superficialidade. Uma emoção genuína, nada manipulada, que brota do estranhamento. Uma sensação periférica, que invade o espaço reservado à lógica e à razão. Talvez seja isso o que nos diferencie dos títeres e dos bonecos: ao contrário deles, sucumbimos à morte, temos limitações físicas e inevitavelmente transmitimos emoções (mesmo quando não queremos); mas carregamos o que se convencionou chamar de “alma” (anima), essa porção de mistério que pertence a todos e a ninguém.

  * Os espetáculos do Festival Brasileiro de Teatro foram apresentados em São Paulo de 11 a 22/9. Oficinas também integraram a programação.