Um quebra-cabeça e seus absurdos

Os jogos de lógica se sucedem em "Cachorros não Sabem Blefar", estimulante espetáculo dos mineiros da Cia. 5 Cabeças (Foto: Marco Aurélio Prates)

Os jogos de lógica se sucedem em “Cachorros não Sabem Blefar”, estimulante espetáculo dos mineiros da Cia. 5 Cabeças (Foto: Marco Aurélio Prates)

A peça Cachorros Não Sabem Blefar, da mineira Cia. 5 Cabeças, com dramaturgia e direção de Byron O’Neil, tem muitos pontos a seu favor. Em primeiro lugar, o atraente e instigante título. Impossível não ficar tentada a assistir; do que se trata, afinal? A seguir, o início. Enquanto o público se instala, os atores Ronaldo Janotti e Saulo Salomão já se encontram no palco – aparentemente imóveis, mas presentes em cena, com energia latente. O cenário joga com a concisão e o balanço entre literalidade e metáfora: um sofá, a mesinha com um telefone de discar e uma banheira (apenas com esses elementos, o espectador já poderia imaginar uma história, uma sequência de eventos). E, por fim, mas não menos importante, muito do êxito da montagem se deve ao elenco afiado. Os atores têm carisma e conferem credibilidade aos seus (disparatados?) personagens, interpretados com frescor.

Cachorros Não Sabem Blefar flerta com o teatro do absurdo e com o nonsense. Não há propriamente uma narrativa convencional, uma história linear – com começo, meio e fim – que caminhe para algum desfecho mais ou menos previsível. Embora exista uma lógica interna que norteia o texto, os riscos são grandes. Durante todo o tempo, a peça se equilibra num fio tênue, trabalhando com a ironia, com a argúcia e com o humor; brinca com as repetições, com o jogo de ideias e de palavras e com figuras tipificadas, mas de modo sutil. Pode ser que nem todos os espectadores acatem a proposta; neste caso, o espetáculo lhes parecerá demasiado cerebral ou caricato, ou ainda arrastado. A todo momento, a montagem dá a impressão de que periga desandar. Mas não desanda – e isso, além de ser seu trunfo, ainda nos faz cúmplices. Os méritos são da encenação, que transcende o texto e não se apega a ele.

Os personagens se caracterizam desde o momento de seu aparecimento em cena – além dos dois que estão presentes desde o início, as três figuras femininas têm entradas “triunfais” e bastante significativas. Não importa os motivos pelos quais os cinco fulanos se encontram ali – nem onde é “ali”. O tempo é relativo; sempre faltará pouco ou muito para o que quer que seja. O relógio de um dos rapazes está parado nas 9h15. Por quê? Cansou? Entre eles, há um Caio, o que significa sinal de mau agouro, infortúnio; ué, mas os dois homens disseram se chamar Adamastor! Um deles mente, portanto. Uma das moças (Luisa Rosa) acredita estar nua quando se encontra vestida e vice-versa; obcecada pela história A Roupa Nova do Imperador, de Hans Christian Andersen, apoia-se no silogismo proposto pelo conto infantil. Aliás, o silogismo e a falácia são dois artifícios usados espertamente no texto (daí nossa cumplicidade – do público – ao “comprar” certos argumentos). A outra mulher (Carol Oliveira) não quer morrer virgem. Ela tem um namorado, que a obriga a cortar cebolas mesmo sabendo que ela não pode chorar, e ele se chama Caio – mais um motivo para que odeie esse nome. E a terceira garota (Mariana Câmara) busca seu cão, que não late nem sabe abrir geladeiras. Existem cães que não saibam latir? Talvez. Mas parece ser consenso no grupo que os cachorros decididamente não sabem blefar – ao contrário das ardilosas tartarugas.

Fica, portanto, a pergunta: quem é o cachorro naquele grupo? Qual daqueles personagens não sabe blefar? Ou apenas um deles blefa – justamente o “não cachorro”? Não creio que exista uma resposta única. Trata-se de mais um problema de lógica sugerido, entre tantos. O espetáculo avança em espiral ascendente; os saltos dramáticos são pequenos, mas eficientes, e o telefone desempenha um papel essencial. A peça tem ritmo e muito jogo, há total sintonia entre os atores, mas ao final, esgotadas as surpresas, vai perdendo um pouco de vigor. O desfecho – como texto – soa reticente, um tanto esgarçado, embora cenicamente esteja bem resolvido. Fiquei com a impressão de que foi escolhida a solução mais simples para encerrar a história.

De todo modo, Cachorros Não Sabem Blefar é um espetáculo estimulante, com opções acertadas e uma provocação constante ao público. Ao aceitar o “desafio” proposto pela Cia. 5 Cabeças, o espectador tende a desfrutar – e muito – daquilo que se passa no palco, mesmo que fique com a impressão de que a compreensão geral lhe escapa. (E daí, não é mesmo? Quem precisa entender tudo?)

Até 6/10, sex. e sáb. 21 e dom. 20h. Gênero: comédia dramática. Duração: 50 min. Classificação: 12 anos. CIT-ECUM: R. da Consolação, 1623, Metrô Paulista, tel. 3255-5922. Ingressos: R$ 40. Crédito: Diners, Mastercard e Visa. Débito: Maestro, Redeshop e Visa Electron. Onde comprar: na bilheteria (abre duas horas antes) ou, com taxa, pelo site compreingressos.com. Observação: quem se chama Caio não paga ingresso (é necessária a apresentação do RG original).

A Cia. 5 Cabeças, de Belo Horizonte, em cena de Cachorros Não Sabem Blefar (Foto: Marco Aurélio Prates)

A Cia. 5 Cabeças, de Belo Horizonte, em cena de Cachorros Não Sabem Blefar (Foto: Marco Aurélio Prates)