
A atriz Jandira Martini como a professora de Literatura na peça “Prof! Profa!”, dirigida por Celso Nunes (Foto: João Caldas)
Já há alguns dias ensaio uma reflexão sobre duas peças que, embora esteticamente muito diferentes, apresentam pontos de vista complementares e dialogam entre si: o monólogo Prof! Profa!, conduzido pela atriz Jandira Martini, e Coro dos Maus Alunos, montagem da Cia. Arthur-Arnaldo. São espetáculos que lançam o foco para o sistema educacional, o corpo docente e o papel da escola, além de abordarem questões bastante pertinentes e sempre atuais. Nesse momento, os professores da rede municipal do Rio de Janeiro se encontram em greve, assim como os profissionais da rede estadual de ensino do Mato Grosso – só para citar dois casos.
Paralisados desde 8 de agosto, os docentes cariocas se opõem ao Plano de Cargos e Salários elaborado pelo prefeito Eduardo Paes. Mesmo após vários protestos dos trabalhadores, o plano foi aprovado, em 1º de outubro, pela Câmara dos Vereadores carioca. Nessa mesma data, 700 policiais foram deslocados para conter a manifestação dos professores, que contou com apoio de movimentos sociais e de integrantes dos Black Blocs. Numa rotina que infelizmente tem se tornado cada vez mais comum no país, gás lacrimogêneo e de pimenta, balas de borracha e cassetetes foram usados pela PM para conter o protesto – ainda que o discurso oficial negue a utilização das armas não-letais. Infelizmente também, como de hábito, parte da imprensa insiste em falar na depredação de patrimônio (público e privado) antes mesmo de explicar as inquietações populares que mobilizam tanta gente.
Por isso, vale ressaltar a importância artística e social de espetáculos como Prof! Profa! e Coro dos Maus Alunos. Sem ranço moralizante nem tom militante, as montagens rompem a abordagem conformista ou os clichês que geralmente rondam os temas ligados à educação. E dialogam diretamente com a realidade brasileira, ainda que os textos sejam de autores europeus. As peças me fizeram recordar de dois filmes: o documentário Pro Dia Nascer Feliz (2006), de João Jardim, que expõe a dura realidade de alunos e professores brasileiros, participantes de um sistema escolar que não privilegia nem o ensino nem o aprendizado, e o francês Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, que acompanha o embate entre professor e alunos numa escola na periferia de Paris, em um contexto de diferenças socioculturais e violência, tomando-a como um microcosmo da França contemporânea.
Que escola é essa, a que temos atualmente? Ensina o quê e a quem? Por que os professores são tão desvalorizados? E por que os alunos não têm prazer em aprender? Não são perguntas destinadas apenas a ministros ou secretários de Educação; são perguntas que a sociedade precisa saber e querer responder, hoje e agora.

O texto do belga Jean-Pierre Dopgane chamou a atenção de Jandira Martini por seu humor, sua ternura e seu cinismo. (Foto: João Caldas)
PROF! PROFA!
Uma professora de Literatura partilha sua história: o pai agricultor não poupou esforços ao buscar-lhe um bom colégio para que pudesse estudar e, mais tarde, seguir carreira docente. Na infância, teve uma mestra inspiradora, daquelas que lecionava de modo apaixonado e estimulante. Quantos sonhos e quantas esperanças tinha quando começou a ensinar! Imaginava que pudesse partilhar com os alunos o encantamento que as obras de Machado de Assis, de Carlos Drummond, de Clarice Lispector… lhe traziam. Mas as decepções não tardaram; o ambiente escolar foi minando seu idealismo a tal ponto que ela acabou por cometer um ato irreparável. Sua punição, contudo, foi inusitada: todas as noites, ela deveria se apresentar no teatro, relatando sua história, como personagem de si mesma. O texto, escrito pelo belga Jean-Pierre Dopagne – ele mesmo um professor com longa trajetória –, tem argúcia e ironia, mas não dispensa a ternura.
Sob direção de Celso Nunes, a atriz Jandira Martini interpreta a personagem com desenvoltura e precisão, num cenário bem simples, no qual bastam uns poucos objetos. Trata-se de um monólogo que transita pela memória e pelo tempo presente, sem seguir uma linearidade cronológica. A personagem oferece à plateia imagens bem nítidas de seu cotidiano como docente, mas também rememora seus tempos de estudante e comenta sua experiência nos palcos. A informação de que a professora virou atriz, além de instigar o público (afinal, somos espectadores de um monólogo dentro do monólogo?), amplia o rol de significados possíveis da peça. Assim, ao interpretar a professora que foi, a personagem pode permitir-se várias licenças poéticas, pois revive no teatro sua própria trajetória. O “ato irreparável” que cometeu, por exemplo, pertence ao plano das ideias ou ao dos fatos? Seria uma metáfora? Ou o desfecho dramático mais conveniente à atriz? Ou ainda um evento verídico, uma atitude desesperada de uma docente à beira de um ataque de nervos?
O relato da professora desperta tal empatia que nos torna cúmplices de sua confissão; terminamos por buscar justificativas que redimensionem o impacto de seu ato, relativizando-o (somos todos, em última instância, monstros?). Ora, não é difícil acolher seu testemunho. A realidade docente de baixos salários, insatisfação no trabalho, desprestígio profissional, descaso por parte do governo e da sociedade – que sente pena retórica dos professores, mas não deixa de criticá-los sem piedade sempre que possível –, além de ambientes escolares cada vez mais violentos e desfavoráveis, parece minar qualquer esperança no sistema de ensino brasileiro. Talvez a personagem de Prof! Profa! tenha sido narcisista em excesso, amado mais sua figura como professora do que a difícil arte de ensinar; talvez, por isso, ela tenha se equivocado de alvo. Afinal, do jeito que está, a escola como instituição social está se tornando detestável tanto para docentes quanto para alunos. Os primeiros estão desorientados e desestimulados; os segundos, desinteressados e desrespeitosos. Por quê?
Nem tudo está perdido, contudo. A filha adolescente da professora acredita que a docência pode ser um instrumento de mudança; pensa em se tornar “profa” ou uma “fessora”, pouco importa como seja chamada. Para a garota, o importante é que a escola seja um espaço que faça sentido.
(O espetáculo ficou em cartaz no Sesc Ipiranga de 31/8 a 29/9.)
>> Leia sobre a outra peça, “O Coro dos Maus Alunos”, da Cia. Arthur Arnaldo.