Teatro sem medo de ser teatro

* Edson Rocha, Renata Sorrah e Giovana Soar em cena de "Esta Criança" (crédito: Sandra Delgado).

Se eu tivesse que definir Esta Criança com apenas uma frase, diria: “ufa, por fim uma peça que não tem medo de ser teatro”. E, se coubesse uma declaração afetiva, seguida por um suspiro daqueles profundos, eu completaria: “graças a espetáculos assim reafirmo minha paixão” – faria uma pausa e divagaria ­– “e talvez até minha crença nesse mesmo teatro…”

Quando o prazer vira também trabalho, como acontece comigo ao cobrir a programação teatral paulistana (entre outras tarefas profissionais), é natural que meu grau de exigência aumente consideravelmente. Assisto a muitos espetáculos mensalmente, acompanho ensaios, eu mesma participo de leitura de peças de amigos, devoro livros e estudos a respeito etc. E, como comentei em posts anteriores, tenho minhas convicções em relação ao teatro (nem certas nem equivocadas; minhas). Por isso, não faço objeções quanto à mistura de linguagens, ao uso de recursos aparentemente dissonantes, a opções dramatúrgicas diferentes ou irreverentes e por aí vai, desde que o teatro não seja deixado de lado… quando se faz teatro.

Volto à nova peça da Companhia Brasileira de Teatro, dirigida por Márcio Abreu, com Giovana Soar, Ranieri Gonzalez e Edson Rocha e a participação de Renata Sorrah, que, encantada com o trabalho do grupo curitibano, propôs uma parceria. (Leia resenha publicada em Época São Paulo aqui.) Dez cenas curtas compõem o texto do francês Joël Pommerat; são basicamente diálogos e algumas poucas rubricas indicativas. Todas se referem à relação entre pais e filhos.

Genitores versus crias –

Esta Criança surgiu de encontros da companhia Louis-Brouillard com mulheres da localidade de Hérouville Saint-Clair, como parte de um projeto elaborado pela Caixa de Abonos de Família de Calvados, na Normandia, norte da França, e pelo Centro Dramático Nacional de Caen. Durante muitos dias, o grupo se encontrou para falar sobre “parentalidade” (o exercício da paternidade e da maternidade, levando em conta os aspectos culturais, jurídicos, econômicos, psicológicos…). Segundo um depoimento de Marie Piemontese, uma das atrizes da companhia, foi com base nas histórias que vieram à tona naquelas rodas de conversa que Pommerat escreveu seu texto, sem se ater necessariamente aos detalhes reais mas às reações e impressões que cada caso gerava no grupo. A proposta é que as cenas funcionassem como reflexos umas das outras, tirando o máximo de tensão de cada situação banal dos confrontos entre genitores e suas crias. A primeira versão se chamou O que a gente fez? (Qu’est-ce qu’on a fait ?, de 2003).

Compreendendo a origem e a forma do texto, vemos como as opções de Márcio Abreu e da Cia. Brasileira de Teatro foram acertadas. A começar do cenário, limpo e sóbrio, uma espécie de cômodo verde em diagonal ocupando a lateral direita do palco. O outro lado se mantém escuro, sem adereços. Esse cômodo está torto, ligeiramente inclinado, como se o chão fosse uma rampa em descida bem suave rumo à plateia. Casualidade? Obviamente que não. Aplausos para Fernando Marés, que com uma opção sutil conseguiu expressar de forma contundente um aspecto fundamental do texto: filiação e parentalidade são escorregares contínuos. Ninguém nasce sabendo o que fazer, ninguém morre sabendo fazer direito. Ainda assim, a humanidade sobrevive. E não para de se reproduzir. Marés ganhou o Prêmio Shell de cenário.

O desenho cênico é impressionante assim como a interpretação dos atores. Tudo muito enxuto, preciso e fluido. Há marcações, mas elas não se fazem notar. Ninguém está engessado em cena. Não há gestos ou movimentos desnecessários. Os atores mudam de registro, ao passar de um personagem a outro, de modo convincente e elegante. Aplausos para a direção de movimento, aplausos para os intérpretes – Renata Sorrah ganhou um Shell como melhor atriz (e ela está excelente), que poderia ser extensivo a seus companheiros. Há uma passagem em que Renata e Giovana contracenam; a mãe chega, aparentemente acuada e com seu discurso de sempre, e é recebida com agressividade pela filha. Acontece todo um jogo de defesa, autopiedade e manipulação. A mãe (Renata) parece miúda no início, mas vai crescendo, crescendo, impondo-se; no fim, a filha (Giovana) é aquela que dá a impressão de ter sido derrotada: termina encolhida, apagada, pequenina. A luz vai desenhando os contornos desse embate. A ironia da última frase, porém, nos desnorteia. Esse confronto terá, algum dia, vencedora?

* As relações entre pais e filhos, mães e filhas, pontuam as dez cenas do texto do francês Pommerat (crédito: Sandra Delgado).

Sem obviedades –

Em determinados momentos, os atores percorrem os corredores da plateia, nos tornando cúmplices e testemunhas. Nessas horas, temos a luz sobre nós ­– qualquer espectador poderia dizer algumas das frases da peça (ou várias, ou quase todas; se não abertamente, ao menos em pensamento. A iluminação de Nadja Naira, também premiada com o Shell, trabalha com nuances e sombras elegantemente. Pontua passagens sem ser óbvia ou previsível. Palmas para ela também.

E, por fim, mas não menos importante, adorei os silêncios. Tenho notado que, cada vez mais, as montagens têm tido medo dos silêncios cênicos (ok, as plateias vêm se tornando assustadoramente mais barulhentas – e não só por conta dos celulares, mas talvez em decorrência de um certo enfado ou da impaciência com tempos mais distendidos; mas não é bem disso que falo). Márcio de Abreu não teve medo nem do breu nem do suposto vazio. Confiou no ritmo que imprimiu às cenas, confiou no jogo que se estabeleceu entre seus atores e entre os atores e a plateia, e aproveitou os blackouts e os silêncios para carregar aqueles momentos  de “nada” com um “tudo”: as nossas subjetividades. Ganhou merecidamente o Shell de melhor direção por sua ousadia em tempos de tanto barulho, poluição cênica e tanta claridade (mas não clareza).

Um amigo comentou comigo que achou o texto de Pommerat um tanto repetitivo. De fato é, circula pelos mesmos temas em espiral. Além disso, o dramaturgo francês dá sempre um passo atrás antes de avançar dois para frente, retomando pontos e elementos de personagens de uma cena anterior, embora isso, ao menos a mim, não tenha incomodado. Talvez esse dado até conte pontos a favor das opções cênicas de Esta Criança.

O que mais me encantou nesse espetáculo, mesmo que haja uma ou outra coisinha miúda de que tenha gostado menos, é o caráter pulsante e vivo que tem. Gente fazendo muito bem o que realmente gosta de fazer, com prazer, com vontade, com disponibilidade e técnica. No fundo, essa é a vontade de todos nós, dentro e fora dos palcos, das redações e das famílias [risos]. Só me resta imitar a Renata Sorrah e pedir à Companhia Brasileira de Teatro: me deixem, um dia, fazer alguma coisa com vocês também! 🙂

* Ranieri e Renata numa das passagens de "Esta Criança": as dinâmicas familiares nunca são simples e fáceis (crédito: Sandra Delgado).