Obscenidades lúcidas

* Suzan Damasceno como a obscena Senhora D, personagem criada pela escritora Hilda Hilst (crédito: Ary Brandi).

Já faz uma semana que fui assistir à Suzan Damasceno em A Obscena Senhora D, em reestreia no Teatro Eva Herz. Levei alguns dias para digerir a experiência – porque sim, para mim, foi uma experiência e tanto. Lembrei-me de meu primeiro contato com um texto da Hilda Hilst (1930-2004), no início da universidade. Me encontrava ainda emaranhada na sintaxe peculiar de Clarice Lispector, saboreando os ecos do sertão de Guimarães Rosa e a potência do léxico e dos versos de Carlos Drummond, para citar alguns. Começava a ler os não-óbvios. Deixava de ser uma voraz leitora “estudantil” para me tornar uma leitora-mulher e uma mulher-leitora: faminta, atenta e ardente. A cada semana, descobria novos autores, entre contemporâneos e clássicos, estrangeiros e brasileiros. Me deliciava com as novidades estilísticas, novos jeitos de tirar as palavras do mofo e de seus lugares-comuns. E foi então que veio parar nas minhas mãos um exemplar de Tu não te moves de ti (1980).

Estupor. Fulgor. Creio que corei nas primeiras páginas. Perdi o fôlego, retomei a leitura. O que essa mulher faz com as palavras, meu Deus, com as frases, com a pontuação? Ela desvirtua os substantivos. Ela remove a sujeira das grosserias. Ela desvirginiza as construções sintáticas. Oh, oh. E esse erotismo que brota do texto, texto vivo, sensual, despudorado. Oh, oh.

O texto de Hilda Hilst sobrevive à modorra, oh se sobrevive.

Agora um parágrafo entre parênteses – me perdoem o anti-clímax, leitores: permaneço propositalmente um tanto alheia diante de certos debates sobre adaptações de textos literários para o teatro, se diretor e dramaturgo foram fiéis à obra, se o encenador tem liberdade suficiente para apresentar uma leitura particular (obviamente que sim), se o crítico de teatro está autorizado a questionar a leitura apresentada (sim também, ué, se a peça está aberta aos espectadores…) etc. Na minha humilde opinião, a adaptação de um texto literário peca quando há (1) reverência em excesso, (2) fidelidade ao verniz mas não à alma da narrativa e (3) uma leitura passiva e burocrática da obra em questão. Além disso, uma montagem é bem-sucedida quando resolve satisfatoriamente as questões que se propõe atingir, usando bem os recursos cênicos e, sobretudo, promovendo o jogo entre os atores e entre eles e a plateia.  Quanto mais pretensiosas são as montagens, maior a exigência que recebem do público – e maior a frustração provocada caso as expectativas não se revelam cumpridas. Risco é risco, e teatro não está fora disso.

*Aos 60 anos, Hillé, apelidada pelo marido Ehud de Senhora D, decide viver num vão de escada (crédito: Ary Brandi).

Oh, oh, voltamos à Hilst, voltamos à Suzan Damasceno e sua obscena, obsceníssima senhora D. Sim, sim, gostei bastante da peça – teoricamente, deveria dizer monólogo, mas o texto é tão polifônico e Suzan passeia tão bem por essas vozes outras que habitam o dizer de D., que abdico do rótulo. Essa senhora D., “D” de derrelição, desamparo, se chama Hillé nos registros, viúva, tem 60 anos e a opção consciente de viver no vão da escada e não se submeter à imbecilidade da vida sem perguntas. Eu não conhecia essa palavra – der-re-li-ção– e me esquecera que havia lido esse livro há anos, bem depois de Tu não te moves de ti, em meu reencontro com Hilst via Caio Fernando Abreu. Fui relembrando dos interstícios da história, da imagem do menino-porco (que me chocou a princípio), da crueza-loucura-lucidez daquela mulher, da passagem dos peixinhos.

“Quando Ehud morreu morreram também os peixes do pequeno aquário, então recortei dois peixes pardos de papel, estão comigo aqui no vão da escada, no aquário dentro d’água, não os mesmos, a cada semana recorto novos peixes de papel pardo, não quero mais ver coisa muito viva…”

E também: “Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da escada? você está me ouvindo Hillé olhe, não quero te aborrecer, mas a resposta não está aí, viu? nem no vão da escada, nem no primeiro degrau daqui de cima, será que você não entende que não há resposta?”

Em cena, não vi Suzan esforçando-se para ser a personagem de Hilda Hilst, mas vi uma Senhora D, a Senhora D imaginada-experimentada por Suzan. Quero dizer que, felizmente, a atriz não nos ofereceu uma leitura superficial ou estereotipada do livro, pelo contrário. Ela partilhou conosco a Hillé que descobriu ao mergulhar na obra de Hilst – por isso, o espetáculo me pareceu tão contundente.

As opções são ousadas, apesar da aparente simplicidade do cenário (eficiente) e da direção (adequada). Fiquei vidrada na figura que habitou o palco e se manteve sentada, por longos momentos, movimentando-se de modo parcimonioso e preciso. Assim, os instantes de brusquidão ou de gestos mais amplos se tornavam bastante potentes e reveladores. Havia muita naturalidade no estar-em-cena de Suzan; sua interpretação tinha matizes e ritmo, tinha respiração. Por isso, toda a prosa poética de Hilst, com suas frases veementes, pode irromper de maneira límpida. E daí o jogo, a abertura ao diálogo com o público, nós que ficamos do lado de cá do vão da escada acolhendo o desabafo e as digressões da Senhora D.

O texto de Hilda Hilst, embora fluido, não é fácil, banal ou didático. Exige entrega e disponibilidade do leitor. Achei bom que Suzan Damasceno e os diretores Rosi Campos e Donizeti Mazonas (que em breve reestreia seu espetáculo de dança Rútilo Nada, também inspirado numa obra da escritora) tenham sido fiéis a essa premissa. O resultado é uma peça, no mínimo, desafiadora. E, àqueles que toparem a aventura, também provocante.

>> A OBSCENA SENHORA D. Até 30/5, qui. 21h. Teatro Eva Herz.

* A Senhora D – "d" de derrelição – parece louca; mas é lúcida em sua busca por respostas e pela transcendência (crédito: Ary Brandi).