“Prefiro não”

* O estupefato advogado (Rodrigo Gaion) diante do enigmático escrivão Bartleby (Cácia Goulart) (crédito: Cacá Bernardes).

Há alguns dias estive relendo O Ator Invisível, de Yoshi Oida (Via Lettera, 2007), que traz excelentes reflexões e ensinamentos sobre a arte de interpretar. Para esse artista japonês, da companhia teatral de Peter Brook, a interpretação deve se sobressair ao ator. Ele diz: “Interpretar, para mim, não é algo que está ligado a me exibir ou exibir minha técnica. Em vez disso, é revelar, por meio da atuação, ‘algo mais’, alguma coisa que o público não encontra na vida cotidiana. O ator não demonstra isso. Não é visivelmente físico, mas, através do comprometimento da imaginação do espectador, ‘algo mais’ irá surgir na sua mente. Para que isso ocorra, o público não deve ter a mínima percepção do que o ator está fazendo. Os espectadores têm de esquecer o ator. O ator deve desaparecer”.

Grande premissa! Yoshi, aliás, aparece no episódio O Ser Transparente, do filme Mundo Invisível (2012), produzido pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e com estreia prevista para 7 de junho. A diretora Laís Bodanzky fez um curta documental justamente a respeito dessa invisibilidade necessária do ator e escutou também a Monja Coen (com considerações muito bacanas), a atriz Cássia Kiss e o ator Lee Taylor. Yoshi dá um exemplo que também está no livro: um artista bastante talentoso entrou em cena e apontou para a lua com toda a elegância possível; os espectadores se fixaram na virtuose do intérprete, na beleza de seu gesto. Outro ator também apontou para a lua; o público não percebeu se o movimento foi elegante: apenas viu a lua, porque o intérprete esteve ‘invisível’.

­E, então, a peça

Me alonguei no preâmbulo para embasar meus elogios à atuação de Cácia Goulart e Rodrigo Gaion em Bartleby. O espetáculo tem como ponto de partida o conto homônimo do norte-americano Herman Melville (1819-1891) sobre o enigmático escrivão, que, segundo o filósofo francês Gilles Deleuze, “desafia toda a psicologia e a lógica da razão”. O narrador, na novela e na peça, é um advogado amante do método e da prudência que, certo dia, contrata o “mais estranho de todos os escrivães que jamais encontrou ou ouviu falar”. A princípio eficiente e interessado, o passivo e insosso Bartleby certo dia decide não cumprir mais as tarefas que lhe são pedidas, respondendo – sem qualquer emoção – com a frase “prefiro não”. O patrão, que não sabe como reagir às recusas do funcionário, fica indignado com a situação, mas também sente algo de enternecimento e comiseração pelo pobre homem. E tenta de tudo para tirá-lo daquela indiferença melancólica em que se encontra.

A vitalidade do advogado (Gaion) contrasta com a apatia angustiante de Bartleby (Cácia). Se os intérpretes fossem cores, talvez o primeiro encarnasse um vermelho vibrante e o segundo, um cinza desbotado e pálido. Obviamente os personagens foram construídos com muita técnica e consciência, mas não vemos tal esforço. A peça é puro jogo – e, apesar de se passar num escritório, em que os personagens parecem misturados a papéis, documentos e procedimentos repetitivos – não tem nada de burocrática, pelo contrário. É dinâmica, e isso graças à dupla de atores, à direção de movimento, ao desenho cênico (o aproveitamento do espaço é excelente; além disso, o cenário foi muito bem sacado) e ao bom uso da luz. Gostei também da música original de Almicar Farina, que não é previsível e entra em momentos certos.

Que pensa Bartleby (se é que tem vontade de pensar), com que sonha Bartleby (se é que sonha), ele almeja algo (se é que almeja)? O escrivão parece preso naquele corpo pesado, amorfo, sem viço ou tônus. Uma alma encaixotada à revelia num corpo-compartimento preso, por sua vez, aos ditames de uma sociedade padronizada. Bartleby é um homem apagado, mas repleto de mistério. Daí nosso interesse por sua figura. Que segredos carrega? Vive mergulhado numa aparente indiferença existencial (ou desistência existencial?), mas nós não ficamos indiferentes a ele.  Tentamos captar algo que elucide o enigma em seus olhos, em suas mãos, em sua respiração. Na cena final, antes dos aplausos, tive a impressão de que o ar se tornou rarefeito. A plateia segurou o fôlego, intrigada, buscando compreender o que acontecera ali pouco antes do blackout.

É interessante notar também as transformações por que passa o advogado. Embora auto-indulgente e excessivamente confiante durante a maior parte do tempo, ele vai perdendo pouco a pouco a empáfia e minando as próprias certezas. Uma vez que os parâmetros que lhe organizavam o pensamento e a rotina são ofuscados pelas atitudes de Bartleby, o chefe começa a questionar a si mesmo sutilmente. No fundo, a recusa de Bartleby se revela como uma ousadia – e por isso soa tão incômoda. E se todos decidirmos responder ‘prefiro não’ às obrigações e às responsabilidades que nos são impostas?

O texto e a montagem têm um tom que beira o absurdo, mas ainda assim Bartleby e o advogado-narrador se mostram críveis. São eles que vemos em cena, pois Cácia e Gaion acreditaram em seus personagens e colocaram a serviço deles – e da montagem –técnica, trabalho de corpo, repertório, dedicação e vontade. E nós ganhamos um ótimo espetáculo. A direção é de Joaquim Goulart.

Se quero ver intérpretes vaidosos ou burocráticos? “Prefiro não.”

> BARTEBLY. Até 9/5, qua. e qui. 21h. Cit-ECUM: R. da Consolação, 1623, tel. 3255-5922.

No início, eficiente e dedicado, Bartleby passa a recusar qualquer solicitação que lhe é feita (crédito: Cacá Bernardes).