
* Luciana Paes em monólogo de tom biográfico como parte do projeto "Ficção", da Cia. Hiato (crédito: Otávio Dantas).
Gosto muito do trabalho da Cia. Hiato. Não consegui assistir a Escuro (2009), porque na época estava fora do país, mas fiquei bem impressionada com Cachorro Morto (2008) e especialmente com O Jardim (2011). Quanta originalidade, inteligência e irreverência em cena, além de técnica e seriedade (no bom sentido). O estimulante trabalho da trupe conquistou diversos prêmios – o diretor e dramaturgo Leo Moreira, por exemplo, recebeu duas vezes o Shell de melhor autor. De fato, as narrativas dos espetáculos são criativas, bem-encadeadas e nada óbvias. Carismáticos, os atores da companhia demonstram uma agradável picardia quando estão em cena. E as montagens fogem da previsibilidade; ficamos pensando nelas durante dias. Com um patamar tão alto de qualidade, é natural que criemos expectativas em relação aos trabalhos seguintes da Hiato.
Assisti aos monólogos biográficos-documentais-confessionais que compõem Ficção, pela primeira vez, num ensaio aberto à imprensa. Em seguida, vi alguns deles novamente na temporada inicial no Sesc Pompeia, em 2012. Agora, as performances estão no CIT-Ecum e pretendo me redimir com a Maria Amélia, pois o monólogo dela foi o único que deixei escapar tanto no ensaio (era o primeiro e cheguei mais tarde) quanto na estreia no circuito teatral. Se as peças anteriores da companhia exploravam, por meio de uma dramaturgia fragmentada, a diversidade de pontos de vista, a polifonia narrativa, os hiatos de nossa existência e a sensação de estranhamento diante da realidade, Ficção se aprofunda nessa investigação. Embaralha as verdades-verdadeiras (os fatos) e as verdades-ficcionais (nossa reconstituição bastante particular para os fatos) em solos criados pelos próprios atores. Emergem, então, depoimentos que misturam reflexões, memória e histórias íntimas dos intérpretes em encenações que explicitam o próprio fazer cênico, sua subjetividade e seu alcance.
Ora, somos todos fingidores. Fingimos tão completamente que chegamos a fingir que é dor a dor que deveras sentimos (cf. Fernando Pessoa). E nem por isso nossas dores deixam de ser extremamente reais e legítimas… A própria companhia, ao divulgar o espetáculo, apresenta cada solo de Ficção como “não apenas um autorretrato, mas um ‘duplo retrato'”. Faz sentido. As performances tratam de alteridade – e não só de uma alteridade concreta, digamos, com a presença física de alguns familiares em cena (como nos solos de Thiago Amaral e Aline Filócomo) –, mas sobretudo com um olhar para esse outro eu que cada um inventa para si mesmo. O eu que gostaria de ter sido, mas também o eu que sou com todos os lapsos e hiatos [dê uma olhadinha no site do grupo e entenderá o uso deste termo]. O eu retido na memória somado ao eu que passa pelo filtro da autocrítica (e, às vezes, da autocomiseração também). No fundo, nossa história pessoal parece mesmo uma ficção.
Achei os solos instigantes. Alguns me cativaram mais que outros –principalmente pelas escolhas feitas, pelo modo com que o relato foi conduzido e pela entrega do intérprete em cena. Destaco a ótima performance de Luciana Paes, que usa Frida Kahlo como a ‘Outra de si’ (justamente a artista mexicana Frida, que tanto trabalhou com o limite entre vida e arte, entre o “ela” e o “além-dela”). Acho que nesse monólogo ficam evidentes as várias premissas do projeto da Cia. Hiato – muito bem executadas pela atriz, por sinal. Outro solo bastante potente é o de Thiago Amaral, que discute a relação com o pai. Por sua atuação, o ator foi laureado com o Prêmio Questão de Crítica. Em tempos de máscaras e disfarces, é bastante pertinente que reaprendamos a nos desnudar, ainda que seja para revelar nosso avesso – como fazem Luciana e Thiago.
Os monólogos partem sempre de um pretexto: algo aparentemente alheio ao que será contado, mas que fornece o impulso necessário para que as narrativas se constituam. Aos poucos, pessoa e personagem se fundem tanto quanto se distanciam, respeitando uma cadência cênica. Não sabemos exatamente o que é invenção, licença poética, passagem real ou pseudo-improvisação. E será que importa saber?

* Thiago Amaral em seu solo, no qual usa a figura do coelho para contar sobre a relação com seu pai (crédito: Otávio Dantas).
Ficção me trouxe à mente o excelente e delicioso filme Cópia Fiel (2010), do iraniano Abbas Kiarostami, um dos mais interessantes cineastas da atualidade. A cópia de uma obra de arte vale tanto quanto o original? Não seria o olhar daquele que contempla, tanto a matriz quanto a imitação, o que de fato lhe confere valor? Kiarostami brinca todo o tempo com essas questões no longa, uma deliciosa viagem pelas ruelas de um vilarejo na Toscana ao lado da francesa Elle (Juliette Binoche), uma dona de uma galeria de arte que vive há anos na Itália, e do inglês James (William Shimel), que está por lá para lançar seu livro Copia Conforme. Com maestria, o diretor estabelece um jogo no qual não sabemos onde está o limite entre verdade e ficção. Num dado momento, a dona de um café confunde Elle e James com um casal real e eles passam a atuar como tal. A dúvida se estabelece: quem são eles? Dois desconhecidos que simulam uma relação amorosa ou amantes que revivem a própria história e aparentam não se conhecer? Kiarostami volta ao jogo de identidades e duplos em seu longa seguinte, o também ótimo Um Alguém Apaixonado (2012).
O que é atuação e o que não é? Quanto de biográfico há em uma criação artística? Por que inventamos personagens para nós mesmos? No fim das contas, de que se alimenta o teatro? Quando termina o ator e começa o sujeito ou vice-versa? Ficção nos faz pensar em todas essas questões. E voltando ao poeta Pessoa, agora ipsis litteris: “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.// E os que leem o que escreve,/ Na dor lida sentem bem,/ Não as duas que ele teve,/ Mas só a que eles não têm”.
FICÇÃO, sex. a dom. 20h. Cit-ECUM – Sala 2: Rua da Consolação, 1623, Consolação, tel. 3255-5922.
Até 5/5: Ficção # Maria Amélia [bethoven] Farah e Ficção # Thiago [campos] Amaral
De 10 a 12/5: Ficção # Luciana Paes [de barros] e Ficção # Fernanda Stefanski [bernardes]