Dilemas & fragilidades

* Alessandra Negrini como Júlia na versão brasileira do clássico do sueco Strindberg.

Pois é, A Propósito de Senhorita Júlia, peça que acaba de estrear no Centro Cultural São Paulo, tem muitas vontades. Vontade de trazer o famoso texto do sueco August Strindberg, Senhorita Júlia (1888), para o século XXI; vontade de ambientá-lo no Brasil contemporâneo; vontade de colocar em foco as relações de gênero e a ascensão de uma classe social que agora pode consumir (e, por isso, decidir?), sempre numa perspectiva atual; a vontade de expor as contradições que ainda se mantêm embaixo do pano – do microcosmo familiar às entranhas do poder público.

Essas vontades estão explicitadas nas escolhas feitas pelo diretor Walter Lima Jr. e pelo dramaturgo José Almino ­– que partiu, na verdade, da peça After Miss Julie (2003), do inglês Patrick Marber. Marber havia transposto o drama criado por Strindberg para uma propriedade rural na Inglaterra de julho de 1945, tendo como contexto a surpreendente vitória do Partido Trabalhista no pleito britânico. Assim, as questões de classe ganharam uma tensão sobretudo política. Walter Lima Jr. e José Almino situam a peça no Rio de Janeiro, no ano de 2002, momentos depois de ser anunciada a eleição de Luís Inácio Lula da Silva como novo presidente do Brasil.

Poder de alcance limitado

Júlia (Alessandra Negrini) é a filha de um deputado de fachada progressista, mas envolvido até o pescoço com práticas ilícitas e ideias conservadoras. Moacir (Eucir de Souza) é o motorista da casa, legítimo representante dessa massa de futuros consumidores que sonha com mais bens do que seu salário pode comportar. Está comprometido com a esperta Cristiane (Dani Ornellas), a cozinheira da casa, evangélica light com um passado questionável (antes daquele emprego, vivia de vender muambas). Diferentemente da jovem desenhada por  Strindberg, a Júlia brasileira é uma mulher desequilibrada emocionalmente, frágil e prepotente. Embora tire proveito das liberdades de sua época, tenta se proteger atrás de preceitos obsoletos de hierarquia.

Uma pena que aquelas vontades todas tenham se diluído diante de uma encenação que me lembrou, em tantos momentos, a gravação de uma novela. Os cacoetes estavam todos ali: a luz que marca mudanças de clima, a trilha que sobe bem na hora de uma confissão ou um devaneio, os efeitos que pontuam didaticamente passagens de tempo e o desenho cênico previsível (algo como: “agora, câmera um, vira para cá; corta! câmera dois, close neles; corta, plano geral”).

Pena mesmo, pois os atores defendem bem seus personagens, especialmente Eucir de Souza. Nesta montagem, a meu ver, o motorista é a chave para compreender o período de transição retratado pelo texto brasileiro. Trata-se de um período de transição que vai além da mudança política (muito mais de ordem simbólica do que ideológica neste caso) e incorpora também questões comportamentais, como o papel do homem em tempos de liberação sexual. O alcance do “poder” de Moacir é limitado – ele pode prover prazer sexual, sabe disso e toma as rédeas da situação por um breve período. Mas não vai muito longe: sem dinheiro e incapaz de saciar Júlia afetivamente (apesar de nutrir uma paixão platônica por ela), acaba resignado com sua condição de empregado, sempre à espera das ordens do patrão, alimentando sonhos medíocres. Um operário chegou ao poder no Brasil; mas… isso muda alguma coisa para Moacir? Moacir vai mudar por causa disso?

As personagens femininas me pareceram mais óbvias em seus comportamentos. Como suas características são todas explicitadas logo no início, já sabemos o que esperar delas ao longo da peça; nos reservam poucos segredos. A cena do pássaro acabou perdendo sua força metafórica para Júlia; talvez possa ser vista como uma referência à condição de Moacir, preso ao sistema e aos valores confusos de seu tempo. No fim das contas, as vontades do motorista e as de A Propósito de Senhorita Júlia não logram se concretizar. Ficam latentes, sabemos que existem e que são legítimas, mas carecem de audácia para se tornar realidade.

PS.: Leia as impressões sobre a montagem Senhorita Júlia, do Grupo Tapa.

* Alessandra Negrini e Dani Ornellas em cena de "A Propósito de Senhorita Júlia".

Até 30/6, sex. e sáb. 20h e dom. 19h. Centro Cultural Banco do Brasil: R. Álvares Penteado, 112, Metrôs Sé e São Bento, tel. 3113-3651. Gênero: Drama. Duração: 90 min. Classificação: 14 anos. Ingresso: R$ 6,00. Crédito: M/V. Débito: M/R/V. Onde comprar: no CCBB (ter. a dom. 9h/20h); com taxa pelo tel. 4003-1212 ou pelo site www.ingressorapido.com.br.