Os segredos de uma vitrola

Como nascem as peças? Desconsiderando propositalmente aquelas que têm origem comercial, a proposta de uma montagem pode surgir do encantamento de um artista, diretor ou ator, por um texto. Por um livro. Por uma canção ou por um filme. Às vezes, é consequência de uma pesquisa de longa data. Ou se constrói com base nas inquietações da companhia, em especial depois de um determinado tempo de trajetória. Mas pode ser que a inspiração para um espetáculo venha de uma situação inusitada. Ou… de um objeto.

* A vitrola de 78 rpm que encantou o ator André Capuano na feira de antiguidades em Buenos Aires, Argentina (arquivo pessoal).

A gestação

O ator André Capuano estava numa feira de antiguidades em Buenos Aires, Argentina, quando escutou um som que o deixou intrigado. Não era propriamente o tango que lhe chamava a atenção, mas a textura sonora com que aquela composição era tocada. A música vinha de uma antiga vitrola portátil de 78 rpm. Ficou encantado com ela, porém a grana estava curta e ele decidiu não comprá-la. Mas a vitrola não lhe saía da cabeça. Resistiu alguns dias mais até sucumbir aos encantos do toca-discos.

Ao voltar a São Paulo, espalhou a notícia de que aceitava de bom grado vinis de 78 rpm e sugestões de lugares onde poderia adquiri-los. Começou a formar suas coleções. Certo dia, chegou às suas mãos A Sonata a Kreutzer, de Ludwig van Beethoven (1770-1827), peça para violino e piano. A própria sonata guarda uma anedota curiosa: havia sido dedicada primeiramente a um violinista polonês, George Augustus Bridgetower. Contudo, ele e Beethoven tiveram uma querela qualquer; despeitado, o compositor alemão, então, resolveu presentear outro violinista, o francês Rodolphe Kreutzer.

Capuano ficou fascinado pela música. Na busca por mais informações, se deparou com a narrativa do russo Liev Tolstói, A Sonata a Kreutzer (publicada em 1891), que dialoga com a obra de Beethoven e dá voz a Pózdnichev, um homem tomado pelo ciúme ao ponto de assassinar a própria mulher. Ao voltar de uma viagem e encontrar a esposa tocando A Sonata a Kreutzer ao lado de um violinista conhecido, deixou-se levar por um total descontrole: a música teria lhe tirado a razão e revirado perigosos sentimentos que estavam, até então, cuidadosamente reprimidos.

Veio, assim, a ideia para uma peça que colocasse em xeque a relação entre homens e mulheres e colocasse nos palcos a vitrola, Beethoven e Tolstói. André Capuano chamou o ator Ernani Sánchez, o dramaturgo Cássio Pires e o diretor Marcello Airoldi. E deste modo surgiu Sonata a Kreutzer – Uma História para o Século XXI, que encerra sua segunda temporada neste domingo, 21 de abril.

* André Capuano (à frente), Ernani Sanchez e a famosa vitrola em cena (crédito: Cacá Bernardes).

A peça

A vitrola de 78 rpm aparece em cena – sóbria e eficiente, cumpre bem seu papel simbólico nesse monólogo feito a duas vozes. A opção por um par de atores me pareceu bem acertada: Pózdnichev parece dialogar ora com a própria sombra, ora com sua consciência. Entra e sai de sua mente conturbada sem que o limite com a realidade fique claro. Assim, sem indicações de quem seria o homem e a quem corresponderia o papel de alter-ego, as vozes se misturam e se fundem propositalmente. Pózdnichev, em muitos momentos, me lembrou Bentinho, o narrador do machadiano Dom Casmurro, por conta de suas elucubrações fantasiosas e conclusões baseadas em indícios nem sempre evidentes. Mas o personagem russo também revela, desde o princípio, uma posição machista, embora questione a hipocrisia que rege a sociedade e os casamentos de sua época. Para ele, os homens aprendem a enxergar as mulheres sempre do mesmo jeito – um objeto de desejo – mesmo quando elas se tornam esposas. Por isso, se há amor, este é meramente carnal. E o casamento, como instituição, estaria fadado ao fracasso: todo homem de certo modo comete adultério, pois deseja consciente ou inconscientemente qualquer mulher que lhe pareça atraente.

O jogo vira, porém, quando a mulher se revela sujeito, um sujeito igualmente com desejo – e não mais objeto de desejo alheio [peço desculpas pela repetição de palavras]. É o que ocorre com a esposa de Pózdnichev; talvez importe menos se houve ou não houve traição, mas sim a maneira com que ela foi gradativamente assumindo as rédeas de sua própria sexualidade diante do marido previsível em suas convicções (e obsoleto diante das mudanças sociais que se faziam presentes). E o homem, acuado e até indignado, explodiu quando a viu tocando sensualmente ao lado do violinista a “sensual per se” sonata n.º 9 de Beethoven.

Gosto dos atores, que trabalham muito bem a exasperação muda e gradativa do(s) personagem(ns), do jogo que se dá entre eles e dos momentos de silêncio-suspensão. Acho que o dramaturgo Cássio Pires poderia até ter sido menos reverente com o texto de Tolstói e ousado mais. A encenação tem um quê de classuda, um tanto conservadora, mas esse aspecto, a meu ver, acaba servindo à narrativa. Há um “fora de moda” no figurino e no cenário que combina bem com a proposta.

* Os dois atores interpretam Pózdnichev, o oficial russo que, tomado pelo ciúme e inflamado pela sonata de Beethoven, acaba por matar a própria esposa (crédito: Cacá Bernardes).

A sonata

Compreendo os sentimentos tumultados de Tolstói e seu Pózdnichev diante da sonata para violino e piano nº 9 de Beethoven, a Opus 47. Para ouvidos leigos e sensíveis como os meus, as escalas vertiginosas revelam um poderoso encontro entre violino e piano, que pode ser tanto um perigoso jogo de sedução, de aproximação e repulsa ou uma disputa de forças. Ao escutá-la, até o compasso de minha respiração se altera. Se cada instrumento representasse um gênero, faria sentido a fantasia de Pózdnichev sobre esse embate entre o masculino e o feminino; mas poderia ser também o confronto entre razão e emoção, corpo e espírito, culpa e desejo. Talvez Beethoven, em sua famosa sonata, tenha explicitado de modo impactante as dualidades que compõem nossa existência – do aspecto mais profundo e individual ao coletivo. Sim, Pózdnichev, a música exaspera. E-xas-pe-ra!

PS: Fiquei curiosa para ler o livro A Sonata a Kreutzer, da holandesa Margriet de Moor (José Olympio, 2011), que constrói um jogo de espelho com a obra de Tolstói, ao narrar a relação tumultuada e passional entre a violinista Suzanna e o famoso crítico musical Marius van Vlooten. A trama tem como pano de fundo o quarteto de cordas criado pelo compositor checo Leos Janacek (1854-1928) e, 1903 e inspirado na história criada pelo escritor russo, com um importante porém: a absolvição da esposa adúltera.

Até 21/4, sáb. 21h e dom. 19h. Teatro Cacilda Becker: R. Tito, 295, Lapa, tel. 3864-4513. Gênero: Drama. Duração: 80 min. Classificação: 14 anos. Ingressos: R$ 10.