A hora da estrela

* O voo de Flávia Melman: no espetáculo Azirilhante, inspirado na história real de sua mãe Vera, a atriz trata de questões fundamentais da existência (crédito: Otávio Dantas).

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”, diz uma das mais famosas frases do escritor russo Liev Tolstói. Para revelar a própria aldeia interior, esse espaço instalado entre a memória e os afetos, a atriz Flávia Melman – da Cia. Simples de Teatro – resolveu remexer em antigas gavetas, em lembranças felizes e tristes, em caixas vazias e outras cheias e também em geladeiras imaginárias, onde certos sentimentos do passado devem ter ficado por muito tempo congelados. Contou com a amiga Daniela Duarte, também da companhia, para dar forma teatral a uma história ao mesmo tempo real e incrível: antes de falecer, Vera Asrilhant Melman, mãe de Flávia, comprara uma estrela pela internet e a batizara com seu sobrenome de solteira; tinha, inclusive, um certificado do registro estelar internacional. A mãe-pássaro, que voara do 13º andar do apartamento rumo ao infinito, era dona de uma estrela. Decerto quisera se apropriar dela literalmente.

Flávia, como intérprete, e Daniela, em seu primeiro trabalho como dramaturga e diretora, conceberam então o espetáculo Azirilhante, que trata com delicadeza, sensibilidade e humor de temas profundos como sentido da existência, finitude, luto e renovação. O cenário, simples, remete a uma cozinha de azulejos brancos e geladeira azul. Ali, a mãe partilha com a filha-bebê suas reflexões sobre a vida e a morte; a filha-menina conversa com suas memórias de infância e, como se experimentasse lampejos de lucidez, essa mesma filha, agora adulta, dialoga com a plateia sobre suas inquietações presentes (nesses momentos, a atuação perde um pouquinho da densidade, mas nada que comprometa).

Flávia trabalha muito bem a mudança de registro e de estado entre as personagens que interpreta. Seu lado clown, lapidado em diversos trabalhos sob orientação de Cristiane Paoli Quito, emerge em vários momentos e confere leveza e ternura às mulheres que vemos em cena. A ótima iluminação, criada por Marisa Bentivegna, cria atmosferas e belas imagens oníricas. Na trilha original de Natália Mallo, identifiquei momentos em que o som do útero se confunde ao som do universo – de onde viemos e para onde vamos, afinal? Temos nossos big bang e big crunch particulares, individuais e intransferíveis. Mas fazemos parte de um universo de proporções inimagináveis; assim, solidão e acolhimento se revelam necessidades intrínsecas.

Azirilhante não é um espetáculo de grandes pretensões – e esta é uma de suas qualidades. Em sua simplicidade, com uma narrativa bem amarrada e uma intérprete tão inteira em cena, envolve o público e nos emociona. Queremos todos voar muito, voar alto, voar longe e, ao final da trajetória, virar estrelas.

PS.: A peça foi viabilizada por meio do site de crowdfunding Catarse, com 150 apoiadores.

Até 25/ 5, sáb. 18h. Teatro Eva Herz (dentro da Livraria Cultura)/ Conjunto Nacional: Av. Paulista, 2073, metrô Consolação, tel. . Gênero: Drama. Duração: 65 min. Classificação: 14 anos. Ingressos: R$ 40. Cartões de crédito: A/D/M/V. Débito: R/M/V. Onde comprar: na bilheteria (ter. a sáb. 14h/21h, dom. 12h/19h) e, com taxa, pelo tel. 4003-2330 e pelo site Ingresso.com.