
O ator Cassio Scapin presta homenagem à grande atriz Myriam Muniz (1931-2004) na peça “Eu Não Dava Praquilo”, em cartaz no CCBB-SP (Foto: João Caldas)
Ela foi enfermeira, antes de entrar para a Escola de Artes Dramáticas, que ficava na Rua Maranhão, onde morava na época. “Não tinha nada que ver com artista, tinha medo de artista. Uma gente muito liberada, Deus me livre, se beijavam na boca! Eu ficava horrorizada. Achava indecente, pornográfico.” Ela não queria necessariamente ser atriz; buscou aquele curso muito mais para ter “cultura geral”, para se informar, desinibir. “Eu era muito tímida, muito careta. Reprimida, reprimidíssima! Tinha medo de homem naquele tempo!” Imagine, via os colegas se beijarem na boca – e ela, que nem beijo no rosto dava, ficava horrorizada. Mas foi se acostumando. Ao longo dos quatro anos de EAD, não faltou um só dia. Estudava, estudava muito, porque não sabia nada. Achavam que ela era engraçada; e, em sua primeira peça, recebeu elogios. Animou-se. É, quem sabe ela ‘desse praquilo’.
Em muitos momentos de sua trajetória artística, a atriz, diretora e professora Myriam Muniz (1931-2004), um dos grandes nomes do teatro brasileiro, pensou que não levasse jeito para o que fazia. Aliás, esse pensamento visitou-a até antes, nos tempos em que fazia balé ou trabalhava como enfermeira. Voltou com força quando dirigiu seu primeiro espetáculo: “É, eu não dava praquilo”. Mas ela perseverou, sempre. “Se na primeira você não acerta, a tendência é desistir. Mas isso é besteira, porque na primeira você não acerta mesmo. Precisa experimentar 40 mil vezes para acertar; tem que ter essa humildade para fazer teatro”, afirmou na entrevista que integra o documentário Myrians por Myriam Muniz (2005), idealizado por Angela Doria, Carmo Sodré, Muriel Matalon e Vânia Toledo e dirigido por Sandra Mantovani.
Nunca entrevistei o ator Cassio Scapin, mas já o vi no teatro várias vezes, como na memorável peça Visitando o Sr. Green, ao lado do saudoso Paulo Autran, e mais recentemente em Lampião e Lancelote, divertido musical brasileiro dirigido por Débora Dubois. Imagino que ele igualmente tenha pensado diversas vezes e em diferentes circunstâncias de sua vida profissional que não dava praquilo. Aliás, quem não pensa? Como disse Myriam, os grandes artistas são lapidados pelo trabalho árduo que decorre da humildade em reconhecer que pouco ou nada sabem, que não nascem celebridades em potência, bastando apenas se submeterem a uma espécie de micro-ondas – como pipoca artificial – para ficarem ‘prontos’ (ao contrário do que a mentalidade contemporânea parece querer nos fazer acreditar). Cassio é um ótimo ator. E, em seu novo espetáculo, o também ótimo Eu Não Dava Praquilo, ele homenageia Myriam Muniz, mulher interessantíssima, dona de personalidade marcante e irreverente. Mas Cassio também revela muito de si mesmo e de suas convicções em relação ao teatro e à arte de estar no palco, em cena. Ao fazer Myriam, Cassio fala de Cassio.
>> Que o palco ganhe vida
Não é preciso nada de mais: bastam uma cadeira, um cenário simples, circundado por leves cortinas pretas, um ator descalço, com roupas pretas e confortáveis. Um cigarro sempre na mão, mas apagado – este é o signo que nos prende à realidade, quando nos “esquecemos” que quem está no palco é Cassio e só vemos Myriam. Porque, de fato, vemos Myriam. A Myriam de Cassio. E não somente porque Cassio consegue reproduzir inflexões de voz, cacoetes e modos de dizer da Myriam “de verdade”. E não somente porque grande parte do texto pertence, literalmente, à Myriam. Mas, sobretudo, porque a essência de Myriam empresta o corpo, os trejeitos, a voz e o olhar de Cassio para se fazer presente. O ator não recorre a clichês de interpretação para “se tornar” uma mulher. Não precisa. A boa interpretação não se detém no verniz barato, na construção previsível e banal, no desenho exterior dos personagens. Quem acompanha meus textos sabe que gosto de citar Yoshi Oida, ator e diretor japonês que trabalhou com Peter Brook; ele diz: “Nosso trabalho como atores não é exibir virtuosismo técnico, mas, ao contrário, fazer com que o palco ganhe vida. Quando isso acontece, o público é levado junto com o artista e entra no mundo que o palco cria”.
Numa entrevista, Cassio contou que conheceu Myriam num curso que ela deu
na Oficina Cultural Três Rios. E que decidiu montar essa peça para manter Myriam presente, não deixar que nos esquecêssemos dela. Além de ser um espetáculo delicioso, uma montagem que une simplicidade, elegância e humor, funciona como uma aula de teatro para iniciantes, iniciados, fãs fiéis e espectadores eventuais, gente que conheceu Myriam, gente que nunca ouviu falar dela. Achei ótimo o momento de interação direta de Myriam/Cassio com a plateia: respirar é preciso, dentro e fora do palco. Respirar é preciso: na vida! E ali não se tratou apenas do gesto mecânico, mas do elixir da existência. Inspirar, expirar, suspirar: a arte do concreto pelo abstrato, do abstrato pelo concreto e com toques de poesia (os suspiros). Respirar de verdade nos ajuda a transcender a mera sobrevivência e experimentar o que realmente significa viver. Sem contar que a respiração é um dos elementos-chave da atuação.

Ao interpretar Myriam Muniz, grande personalidade do teatro brasileiro, Cassio Scapin propõe uma reflexão ao mesmo tempo poética e divertida sobre o ofício do ator (Foto: João Caldas)
>> Alteridade
Achei tão interessante e pertinente que o figurino remeta a roupas “de ensaio” e que o ator mantenha seus pés descalços, como em geral ocorre nos workshops de interpretação. Além de Myriam, que dá seu depoimento, ali também não seria Cassio diante da mesma Myriam, naquela oficina de outrora, aprendendo a ser ator, a ser gente?
Também me lembrei de Ficção, espetáculo da Cia. Hiato, dirigida por Leo Moreira. Nos seis monólogos que o constituíam, os atores da companhia recriavam suas biografias, recontavam-nas como o poeta fingidor de Fernando Pessoa (meu xará é outra citação recorrente em minhas postagens, ai, ai, ai). Todos eles trabalhavam com a alteridade – o Outro que não era eles, mas que poderiam ser e/ou ter sido – a fim de falar sobre quem eram. O tom era confessional, os temas sempre tangenciavam o fazer artístico e teatral, o ser ator/atriz, havia sempre a primeira pessoa. Nós, espectadores, embarcávamos nos relatos sem saber exatamente o que era o quê: a dor que o ator/a atriz sentia, a dor que sentíamos nós, uma terceira dor que imaginávamos etc. Em Eu Não Dava Praquilo, tive a mesma impressão. Quando terminava a Myriam e começava o Cassio ou vice-versa? A resposta não importa, porque no palco essa dúvida é o que nos fascina.
Elias Andreato dirige a montagem, cuja dramaturgia, a cargo de Cassio Scapin e Cássio Junqueira, foi baseada no documentário sobre Myriam Muniz, em entrevistas dadas por ela e em sua biografia. Fábio Namatame assina o figurino e o cenário. A trilha sonora é de Jonatan Harold.
Myriam se dedicou à docência porque queria partilhar com as novas gerações os aprendizados, as descobertas e as alegrias que teve ao longo de sua carreira como artista. Cassio partilha conosco suas próprias reflexões sobre o teatro por meio de Myriam. Por isso, Eu Não Dava Praquilo é um espetáculo que nos lembra da sensação frequente de que não damos para essa tarefa hercúlea que é viver – e viver com consciência e plenitude. Mas justamente por reconhecermos que não nascemos prontos, que lapidar é preciso, que ainda tropeçaremos 40 mil vezes… é que aprendemos a estar vivos, a ser autônomos, a trabalhar nossos talentos e a lidar com nossas imperfeições. E, sim, sim, podemos alcançar fagulhas de felicidade. Isso nos disse a Myriam. Isso nos disse o Cassio.
Até 23/9, sáb 20h, dom. 19h e seg. 20h. Gênero: monólogo. Duração: 60 min. Classificação: 16 anos. Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB): R. Álvares Penteado, 112, Metrô Sé, tel. 3113-3651. Ingressos: R$ 6. Onde comprar: na bilheteria do CCBB (qua. a segunda 9h/21h), ou, com taxa, pelo site ingressorapido.com.br. Estacionamento conveniado: R. da Consolação, 228 (Edifício Zarvos) – R$ 15,00 pelo período de até cinco horas, com transporte de van grátis entrada do CCBB.