O amor e seus disparates

Djin Sganzerla e Luiz Arthur fazem os românticos protagonistas das peças "O Belo Indiferente" e "Entre Nebulosas e Girassóis" (Foto: André Guerreiro Lopes/ Netun Lima)

Djin Sganzerla e Luiz Arthur fazem os românticos protagonistas das peças “O Belo Indiferente” e “Entre Nebulosas e Girassóis” (Foto: André Guerreiro Lopes/ Netun Lima)

Ainda cabe falar do amor romântico no teatro? E como evitar clichês? De que modo driblar a previsibilidade de histórias que se baseiam num conceito aparentemente superado, exaurido e banalizado? Duas peças que ficam em cartaz até o fim de julho, em São Paulo, trazem personagens que se nutrem da idealização do Outro e da supervalorização do sofrimento provocado pela ausência ou pela indiferença alheias. Os dois protagonistas se apoiam em projeções deles mesmos e em fantasias que pouco correspondem ao que de fato vivem. Relacionam-se com o ser amado sempre de modo platônico: ambos acatam a impotência e a não-concretização de seus próprios desejos. Falo aqui do homem (Luiz Arthur) de Entre Nebulosas e Girassóis, da Companhia Teatro Adulto, e da mulher (Djin Sganzerla), de O Belo Indiferente, do Núcleo Lusco-Fusco, muito bem defendidos por seus intérpretes. Contudo, para a nossa sorte, as duas companhias foram bem-sucedidas tanto em escapar dos lugares-comuns que permeiam as histórias românticas quanto em subvertê-los. Bons textos, atores bem dirigidos e encenações construídas de modo preciso, desde os detalhes, deram frescor ao que poderia soar manjado.

O onírico iluminado e o presente taciturno: Julia Marques, Rafael Neumayr (à esq.) e Luiz Arthur em cena do espetáculo "Entre Nebulosas e Girassóis", da mineira Companhia Teatro Adulto (Foto: Netun Lima)

O onírico iluminado e o presente taciturno: Julia Marques, Rafael Neumayr (à esq.) e Luiz Arthur em cena do espetáculo “Entre Nebulosas e Girassóis”, da mineira Companhia Teatro Adulto (Foto: Netun Lima)

ENTRE NEBULOSAS E GIRASSÓIS

Grata surpresa vinda de Belo Horizonte (MG): um espetáculo de delicadezas visuais, bastante cuidadoso com os detalhes. Tudo ali significa; e, de maneira não literal nem previsível, dialoga com o texto: as unhas – os jovens têm as dos pés pintadas; o protagonista, as das mãos –; as cores do figurino estão em sintonia com os tons do cenário, compacto e intimista como uma caixinha de música (imagem emblemática para a narrativa); os apliques nas roupas dos personagens masculinos sugerem algum tipo de familiaridade entre eles e também remetem a um signo romântico; os cabelos úmidos da personagem feminina; a maquiagem (as “olheiras” vermelhas); as luminárias em forma de flor; o excelente desenho de luz; a trilha sonora inicial (de novo, a caixinha de música).

O texto, de Rafael Neumayr, é vigoroso, filosófico, existencial. Exala uma poesia dura, máscula, salpicada de amargura. A princípio, parece prolixo, mas é repleto de entrelinhas e pequenas (mas instigantes) armadilhas. Um homem solitário se ocupa em fantasiar um encontro – que nunca aconteceu – com uma mulher que ele via com frequência num café, mas de quem jamais teve coragem de se aproximar. A imagem daquela moça encantadora tem sobrevivido em sua mente anos a fio graças tão-somente à sua insistência. O homem prefere sonhar a viver; afinal, em seus sonhos, recria-se a si mesmo, torna-se um jovem garboso, que se aproxima da mulher e faz com que ela se apaixone por ele. Contudo, em determinado momento, criador e criatura se confrontam: a imagem que cria para si mesmo se distancia, quer independência, desvincula-se de sua matriz. Enquanto o amor platônico ainda bate na aorta, a lucidez irrompe na porta da realidade. O homem teme perder as parcas lembranças da moça, retalhos de recordações que lhe restam depois de tanto tempo, o homem teme perdê-la uma vez mais, desta vez em seus próprios sonhos! O desfecho se mostra inevitável.

A diretora Cynthia Paulino opta por uma encenação de gestos mínimos e comedidos – um grande acerto. O clichê do romantismo pede movimentos largos, quase exagerados, interpretações espaçosas; romper o senso comum desse tipo de atuação só traz benefícios à montagem, além de provocar positivamente o espectador. Cynthia trabalha com a latência e com a circularidade de ações. O ótimo trio de atores (Julia Marques, Luiz Arthur e Rafael Neumayr) se mantém sempre em alerta. Quando dois deles interagem, o terceiro continua ativo, em interlocução com a cena, às vezes por meio de contidas expressões faciais ou um mexer de dedos. Entre Nebulosas e Girassóis é um espetáculo inteligente; à primeira vista, pode até soar meio démodé por conta de seu tema, mas a montagem se encarrega de quebrar as expectativas, uma por uma, sem perder o lirismo.

ENTRE NEBULOSAS E GIRASSÓIS. Até 30/7, seg. e ter. 20h. Gênero: Drama. Duração: 60 min. Classificação: 12 anos. Sesc Consolação: R. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 3234-3000. Ingressos: R$ 2,50 (trabalhador no comércio ou de serviço matriculado) a R$ 10. Crédito: Diners, Master, Visa. Débito: Maestro, Redeshop, Visa Electron. Onde comprar: no Sesc Consolação (seg. a sex. 12h/22h; sáb. 10h/21h e dom. 16h30/18h) ou qualquer unidade do Sesc.

Djin Sganzerla interpreta uma cantora furiosa com seu amante em "O Belo Indiferente", de Jean Cocteau, com direção de Helena Ignez e André Guerreiro Lopes (Foto: André Guerreiro Lopes/ Netun Lima)

Djin Sganzerla interpreta uma cantora furiosa com seu amante em “O Belo Indiferente”, de Jean Cocteau, com direção de Helena Ignez e André Guerreiro Lopes (Foto: André Guerreiro Lopes)

O BELO INDIFERENTE

O texto é do multifacetado Jean Cocteau (1889-1963), poeta, escritor, dramaturgo, pintor e cineasta francês, diretor de O Sangue de um Poeta (1930) e O Pecado Original (1948). Tem, como protagonista, uma jovem cantora, que aguarda ansiosamente por Emílio, seu amante, num quarto de hotel. Um de seus luxos é haver instalado ali um telefone, com a intenção de que Emílio a avisasse quando fosse se demorar em suas aventuras noturnas. Mas isso jamais acontece; o aparelho acaba sendo usado por ela mesma na busca por pistas do paradeiro do rapaz e, vez ou outra, recebe ligações da irmã dele.

Essa mulher está presa ao que pensa ser uma paixão. Parece anacrônica em tempos de volatilidades sentimentais, amores líquidos, relacionamentos descartáveis, feminismos beligerantes. Aliás, ela se sabe anacrônica: dependente, carente, melodramática. A encenação aqui privilegia o exagero, o excesso: o neon, a música, as luzes, os ruídos, os movimentos, os gestos, as pilhas de vinil no chão, as garrafas abertas de bebidas alcoólicas baratas. O texto é verborrágico, repetitivo, exaustivo. O lugar-comum aqui seria esperar um escândalo qualquer, um ato extremo, uma tragédia – que acertadamente não vem. A atriz Djin Sganzerla, excelente, tem uma atuação hipnótica, que preenche a sala com a fuligem invisível de uma paixão romântica requentada à exaustão e rouca de tanto gritar. A montagem tem humor, outra quebra de expectativa. Emílio (Eduardo Mossri) finalmente chega, mas não emite palavra. Seu silêncio vem carregado de escárnio. A cantora se revolta, mas não se surpreende. Novidade seria Emílio fugir do script, o que não acontece. E tudo transcorre dentro do previsto entre eles.

No fundo, a cantora e Emílio são personagens da história de amor que ela inventa para eles. Existe um acordo tácito entre os dois; ambos precisam daqueles personagens que vestem, que escolhem para si. Eles sabem que tudo não passa de uma farsa, uma farsa conveniente, disfarçada de paixão desmedida, de desdém machista, de delírio e de desprezo. Não há final feliz ou infeliz, como se esperaria numa história romântica tradicional. Há qualquer final; diante de uma vida insossa, com uma sopa de cenouras e abobrinhas também insossa, de cigarros insossos, atordoados por luzes fluorescentes e empanturrados por banalidades sem-fim, a existência se salva com a ressignificação da indiferença. Sejamos ridículos, portanto. Sejamos românticos.

A direção é de André Guerreiro Lopes e Helena Ignez, mãe de Djin.

O BELO INDIFERENTE. Até 1º/8, qua. e qui. 21h.  Gênero: drama. Duração: 60 min. Classificação: 12 anos. CIT-ECUM: R. da Consolação, 1623, Metrô Paulista, tel. 3255-5922. Ingressos: R$ 40. Crédito: Diners, Mastercard e Visa. Débito: Maestro, Redeshop e Visa Electron. Onde comprar: na bilheteria (abre duas horas antes) ou, com taxa, pelo tel. 4003-2330 ou pelo site ingresso.com. Reservas: pelo email bilheteria@citecum.com.br.