Homens e mulheres que andam no mar

Cena da peça "Cais ou da Indiferença das Embarcações", escrita e dirigida por Kiko Marques: três gerações de homens e mulheres que "andam no mar". (Foto: Ligia Jardim)

Cena da peça “Cais ou da Indiferença das Embarcações”, escrita e dirigida por Kiko Marques: três gerações de homens e mulheres que “andam no mar”. (Foto: Ligia Jardim)

Lembro-me de ter lido, há tempos, a seguinte frase: “Existem três tipos de homens – os que vivem, os que morrem e os que andam no mar”. Não me recordo agora do livro que a menciona e, ao checar a autoria, acabei encontrando referências aos gregos Platão e Aristóteles e também a Anacarsis, filósofo de Cítia. A sentença ajuda a definir muito bem os personagens da bela Cais ou Da Indiferença das Embarcações, uma das melhores peças atualmente em cartaz (estreou em outubro de 2012). Existem aqueles indivíduos cuja existência é carregada de plenitude; não se atêm ao passado nem ao futuro, estão sempre presentes no momento presente, na vida presente. Mas há também aqueles que, embora respirem, se alimentem e façam coisas, abdicam de viver a própria vida. Refugiam-se em memórias, amparam-se em promessas frágeis e “vão tocando” o próprio cotidiano à espera de algo indefinido. E, por fim, há as pessoas que precisam do mar, estão ligadas de modo inevitável às águas, tanto em sua dimensão literal quanto simbólica; carregam, em si, centelhas de Ulisses e das sereias; fragmentos dos antigos navegadores, aqueles que descobriam novos mundos; são poetas que não escrevem suas poesias, criam-nas sobre e sob as águas. Loucos, visionários, passionais, aventureiros? O espetáculo Cais nos apresenta justamente alguns desses homens e mulheres que andam no mar.

O Barco Sargento Evilázio é quem conta a história de três gerações de habitantes da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. A poita Rosiméri apenas ouve. A narrativa começa mais ou menos no compasso da Quadrilha, de Drummond. A bela Magnólia se apaixona por Nilmar – talvez nunca tenha deixado de amá-lo, desde o primeiro encontro dos dois, quando ainda era uma menina. Porém, ela é casada com Bonifácio, homem de espírito empreendedor, querido por todos e grande amigo de Waldeci, o diretor do presídio da ilha. Este nutre um antigo despeito por Magnólia; ao descobrir o affair da moça, passa a chantageá-la. Seguimos, então, para outra geração: a de Walcimar, filho de Waldeci, e sua paixão por Berenice. Os dois se conhecem no cais, lugar que adquire um sentido simbólico para o casal. Por isso, escolhem batizar o filho, Walciano, no Sargento Evilázio, em pleno mar. Parceiros no amor e nos projetos, são eles que, com o apoio do padrinho Bonifácio, conquistam melhorias para a ilha. Por fim, acompanhamos os dilemas de Walciano, que até tenta ficar longe do cais e das águas, mas não consegue. Quem lhe oferece afagos e colo é Juciara, neta de Bonifácio e Magnólia, dona de uma pousada local. E, numa das mais belas cenas da peça, Walciano concretiza o destino de todos os demais: ele se devolve ao mar.

O texto e a direção são de Kiko Marques, da Velha Companhia. Uma dramaturgia muito bem alinhavada, nada previsível. Apesar das rupturas temporais, segue um eixo narrativo bastante claro. Os diálogos fluem com naturalidade; não há excessos, redundâncias ou passagens desnecessárias. A direção não pesa, pelo contrário; preserva o ritmo e o frescor das interpretações. O elenco é bastante equilibrado e coeso; todos os atores se saem muito bem. São convincentes e cativantes, precisos nos pequenos gestos, nas expressões, nas inflexões de voz, no sotaque. O excelente cenário – um cais – dá conta de toda a ambientação, sem recorrer a grandes artifícios. Os figurinos também estão muito adequados: desde a escolha dos tons das roupas até o acréscimo de uma ou outra peça para indicar recuo ou avanço no tempo. Inteligente foi a opção pelo uso de bonecos em determinados momentos, o que conferiu poesia e transcendência às cenas, sem cair no comodismo da literalidade. Elogios também à ótima trilha e à luz.

Fiquei muito comovida nas duas vezes em que assisti à peça; são três horas de espetáculo, com intervalo, mas nem senti. Parece que somos levados, com suavidade, a um estado de sonhação, como se flutuássemos sobre as águas do Oceano Atlântico, quem sabe a bordo do próprio Sargento Evilázio. Consegui ver as estrelas do céu da Ilha Grande, ouvir os grilos, enxergar as pegadas do menino Walciano sobre a areia, escutar os suspiros de Magnólia ao descobrir o amor. É sempre gratificante encontrar uma companhia teatral que se dedica com tamanha paixão e competência a um bom projeto. Parabéns à Velha Companhia. Vida longa ao espetáculo: que ele encontre outros portos para poder atracar e, assim, continuar emocionando espectadores e viajantes, especialmente aqueles que também andam no mar.

Com Alejandra Sampaio, Kiko Marques, Marcelo Diaz, Marcelo Laham, Luciano Gatti, Marcelo Marothy, Marco Aurélio Campos, Maristela Chelala, Maurício de Barros, Patrícia Gordo, Rose de Oliveira, Tatiana de Marca, Virgínia Buckowski e Walter Portella.

CAIS OU DA INDIFERENÇA DAS EMBARCAÇÕES. Até 23/7, seg. e ter. 20h. Gênero: drama. Duração: 180 min. Classificação: 14 anos. Teatro da Memória – Instituto Cultural Capobianco: R. Álvaro de Carvalho, 97/103, Metrô Anhangabaú, tel. 3237-1187. Ingressos: R$ 30. Onde comprar: na bilheteria, que abre duas horas antes.

Alejandra Sampaio e Marcelo Laham interpretam Berenice e Walcimar, um dos casais da peça "Cais", da Velha Companhia. (Foto: Ligia Jardim)

Alejandra Sampaio e Marcelo Laham interpretam Berenice e Walcimar, um dos casais da peça “Cais”, da Velha Companhia. (Foto: Ligia Jardim)