Feridas que ainda doem

* Os bailarinos Francisco Silvino e Maíra Campos interpretam torturador e torturada em cena de “Colônia Penal”, espetáculo inspirado na obra homônima de Franz Kafka. (Foto: FK)

Uma vez mais, a Cia. Borelli de Dança, criada em 1997 e dirigida pelo coreógrafo e bailarino Sandro Borelli, se inspira na obra do escritor checo Franz Kafka (1883–1924) para montar um espetáculo impactante e bem diferente das propostas que focam apenas na dança pela dança. No novo trabalho da companhia, não há espaço para a passividade do espectador. Do primeiro ao último minuto, a atmosfera se apresenta incômoda e bastante tensa. A montagem se estrutura numa crítica às sistemáticas torturas que aconteciam em porões de delegacias e quartéis durante a ditadura brasileira. Trata-se de um espetáculo assumidamente político; como o programa deixa claro, é “dedicado aos mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985)”.

No conto Na Colônia Penal, Kafka propõe uma reflexão a respeito dos regimes despóticos e das barbáries praticadas por eles. Um oficial acompanha um forasteiro recém-chegado à colônia penal a fim de lhe mostrar os procedimentos locais. Naquele dia, ocorrerá a execução de um condenado, julgado de modo arbitrário, como de hábito. O oficial regozija-se a relatar ao visitante como funciona o instrumento de tortura que utiliza: uma máquina que escreve, com agulhas e durante horas, a sentença no próprio corpo daquele que é punido. O sistema havia sido instalado no mandato do antigo comandante; o novo, contudo, não se mostra muito simpático à prática. O oficial tenta conquistar a simpatia do forasteiro; mas este recrimina a crueldade da punição.

Borelli, em sua Colônia Penal, trabalha com elementos-chave desse texto de Kafka: a detalhada descrição de métodos de tortura; a passividade do observador estrangeiro; e a estranha relação entre o oficial e o condenado. Num canto, à esquerda, no único ponto iluminado do espaço, cinco sujeitos conversam animadamente durante o jantar, regado a vinho. Todos bem alinhados, vestindo terno, sapato e camisa social. Um deles, o visitante, é representado por um manequim: imóvel, impassível, omisso. Apresenta-se, então, o condenado; começa o degradante jogo de dominação, subjugação e humilhação por parte daqueles que detêm o poder. Gestos inicialmente afáveis se revelam golpes cruéis – e imorais. Ficamos admirados com a resistência/resiliência do torturado (no dia em que assisti ao espetáculo, a intérprete era Branca Gonzaga, excelente); chocados com a mecânica acintosa do método; horrorizados com a indiferença cruel dos torturadores, que agridem com a mesma naturalidade com que bebericam seu vinho ou mastigam o pão. A repetição exaustiva e quase previsível de movimentos revela a existência de uma engrenagem extremamente funcional – e nada amadora – de agressões. Tudo muito indigesto.

Ficamos desconfortáveis. Essa tortura não vai acabar nunca? Esses fulanos não têm sentimentos? E esse torturado, como consegue resistir tanto? E por que o faz? Mais desconforto. O corpo agredido expõe toda a sua fragilidade – e também sua fortaleza. Quase sentimos em nossa própria carne a crueldade perpetrada. A tortura se torna entretenimento. Nós, espectadores, nos sentimos testemunhas impotentes. Nossa torcida é para que aquele corpo torturado resista e resista e resista. Desistimos de esperar que um dos torturadores tenha clemência; afinal, todos eles agem como autômatos dotados de desprezo e sarcasmo.

Árido, exigente e corajoso: assim eu definiria Colônia Penal, da Cia. Borelli de Dança. Trata-se de um espetáculo que não faz concessões e que não aplaca nossas dores, mas as expõe – e sem piedade. Flerta, de perto, com o teatro físico: a dramaturgia tem primazia sobre a coreografia, mas o corpo é sempre o protagonista. Nas montagens da companhia, o corpo não está a serviço de uma ideia excepcional ou de um arsenal de emoções. O corpo se assume concretude, instrumento político, materialização do ser-estar no mundo, do posicionar-se, do agir.

Colônia Penal é mesmo dança?, alguém pode questionar. Ora, e por que não seria? Apresenta desenho coreográfico, precisão de movimentos, uso consciente do espaço cênico, intérpretes bastante centrados. Durante regimes despóticos ou tiranias de qualquer ordem (até aquelas da própria consciência), limites e limitações são impostos ao corpo. E, mesmo sob restrições severas, exteriores ou internas, esse corpo busca a sobrevivência – às vezes, por meio de gestos mínimos ou da própria pausa, em pulsação ritmada; em outros momentos, simplesmente pela pura insistência em não sucumbir.

Com os intérpretes: Alex Merino, Amanda Santos, Francisco Silvino, Maíra Campos, Verônica Santos e Branca Gonzaga.

 Até 4/8, sex. e sáb. 21h, dom. 20h. Duração: 50 min. Classificação: 14 anos. Kasulo Espaço de Cultura e Arte: Rua Sousa Lima, 300 – sobreloja, Metrô Marechal Deodoro, tel. 3666-7238. Grátis. 

As bailarinas Amanda Santos e Branca Gonzaga em cena de "Colônia Penal", espetáculo da Cia. Borelli de Dança. (Foto: FK)

* As bailarinas Amanda Santos e Branca Gonzaga em cena de “Colônia Penal”, espetáculo da Cia. Borelli de Dança. (Foto: FK)