
* Eu e o ator Guilherme Weber durante performance do dia 23/5 (crédito: Lenise Pinheiro, Blog Cacilda).
Na quinta-feira passada, voltei para casa muito empolgada. Tinha acabado de ver White Rabbit, Red Rabbit (Coelho Branco, Coelho Vermelho), do dramaturgo iraniano Nassim Soleimanpour (1981), e fazia tempo que não me divertia tanto com um espetáculo teatral. A proposta de Nassim é, ao mesmo tempo, inteligente e excitante. Impossível sair indiferente. Impossível sair impassível! Queria ter escrito algumas reflexões no calor do momento, mas obrigações cotidianas e prosaicas acabaram tomando minha atenção nos dias que se seguiram. Ainda assim, volta e meia eu me lembrava da difícil escolha de um coelho enjaulado, narrada por Nassim pela voz do ator Guilherme Weber: morrer de fome ou morrer espancado em decorrência da própria ousadia para saciar essa fome? Meu pensamento dava voltas tão grandes que chegava até Albert Camus: “Existe apenas um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia”.
Calma, calma. O texto em nenhum momento fala de suicídio diretamente. Porém, me fez refletir sobre certos caminhos que se revelam não-caminhos e que, em vez de reavivar ímpetos latentes, sufocam-nos sem dó ou piedade. Você está esfomeada, enjaulada, e descobre uma cenoura em cima da escada. O que fazer? Ora, pelo menos tentar alcançá-la, não? E, depois, quem sabe, comê-la ou reparti-la com os companheiros. Mas há outra opção: ignorá-la, fingir que não há nada lá; afinal, você sabe quais serão as consequências…
Vinha de uma semana um tanto espinhosa (creio me encontrar numa fase “ser ou não ser, eis a questão”) e andei sentindo alguma náusea por aqueles dias; náusea física mesmo. Por isso, até cheguei a cogitar que, como o narrador do fantástico conto do argentino Júlio Cortázar – Carta a Uma Senhorita em Paris –, eu também começasse a vomitar coelhinhos. Mas coelhinhos vermelhos, não branquinhos ou cinzentos. “Os costumes, Andrée, são formas concretas do ritmo, são a cota do ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão terrível vomitar coelhinhos uma vez que isso havia entrado no ciclo invariável, no método”, escreveu o narrador de Cortázar. Porém, de tempos em tempos, nosso método sofre abalos, pois certas experiências nos tiram de nosso próprio lugar comum, dando-nos uma bela chacoalhada. E aí?
>> Convicções éticas X punição
A inspiração para que Nassim Soleimanpour, formado em Artes Cênicas pela Universidade de Teerã, escrevesse essa peça veio do fato de ter seu passaporte confiscado e ser proibido de deixar o Irã, quando se recusou a prestar o serviço militar obrigatório. Ganhou o status de “conscientious objector” (objetor de consciência). Um amigo meu israelense, o Gilad, passou por situação parecida: negou-se a cumprir o período compulsório no exército e ficou preso durante um período, impedido de deixar Israel. Ambos tinham suas convicções éticas para não aceitar uma obrigação determinada por seus respectivos países com a qual não estavam de acordo. Foram punidos. Ousaram questionar uma regra vigente – o serviço militar, no caso deles, com repercussões bem profundas.
White Rabbit, Red Rabbit fala de obediência social e censura, de ousadia e riscos e, sobretudo, das escolhas que inevitavelmente precisamos fazer. Trata-se de um texto que permite múltiplas leituras, pois oferece diversas camadas. Vem sob a forma de um monólogo, aparentemente conduzido por Nassim (o autor-narrador) e que ganha vida por meio da voz do ator ou da atriz que o está lendo. Sim, lendo, porque o intérprete recebe o texto logo depois de pisar no palco e entrar em cena (saiba mais aqui). É certo que, em se tratando de um ator no palco, sob o foco de luz e com plateia, uma leitura jamais é uma… simples leitura. Na quinta-feira passada, foi o Guilherme Weber. Assim, o personagem que se cria diante de nós tem algo de Nassim, tem algo do ator e tem algo de nós, espectadores. Nassim-Weber* (ou Guilherme-Soleimanpour, talvez) conversava diretamente com o público. Fazia-nos perguntas, nos provocava, oferecendo-nos dilemas. Chamou alguns de nós ao palco – e, curiosamente, não nos constrangíamos em entrar e sair de cena, parecia natural que todos os que ali estávamos realmente tivéssemos feito um pacto de acreditar naquelas palavras (ou, ao menos, levá-las a sério) e participar do jogo. Isso foi mágico. E o que é o teatro, afinal?
>> O teatro desnudado
Um coelho branco quer ver um show no circo mas é barrado por um urso, que lhe pede um ingresso. Sem dinheiro, o coelhinho conta com uma ajudazinha dos amigos para conseguir sua entrada. Nova tentativa, agora com o ingresso; o urso o adverte: ficar com as orelhas em pé é proibido, você pode atrapalhar os demais espectadores. Puxa, por sorte o coelho branco conseguiu esconder as orelhas sob um capuz vermelho. Agora, sim, ele pode se sentar entre o público e assistir ao aguardado show dos…
Talvez um dos segredos de White Rabbit, Red Rabbit seja assumir-se teatro em sua forma mais essencial: expõe os bastidores do fazer dramatúrgico, expõe o processo de construção de um personagem (para o ator e para os espectadores), expõe a necessidade de se estabelecer um diálogo verdadeiro com o público. Dispensa artifícios outros (cenário, figurino, trilha, desenho de luz…) – importantes, mas coadjuvantes quando não há um bom texto e um bom intérprete – e permite que a espontaneidade, a improvisação e a picardia se mantenham presentes durante todo o tempo. É evidente que dependemos também do intérprete, que ele assuma o jogo e jogue, que ele seja mais que o “ele cotidiano” – ou seja, que seja ator e se assuma como tal, que saiba tirar proveito de sua voz, de sua disponibilidade e do jogo de cena. Guilherme Weber mandou bem e segurou nossa atenção do começo ao fim.
Mais não posso dizer. Embora cada performance conte com um ator diferente, pois esse limiar tênue entre a naturalidade do primeiro contato com o texto e todo o repertório técnico do artista é o que oferece frescor à encenação, é uma delícia descobrir as sacadinhas dramatúrgicas na hora em que elas se dão – uma espécie de vaudeville do século 21, transformando espectadores em participantes. Ah, eu gostei muito, não sei se todos sairão tão satisfeitos quanto saí. Contudo, o que mais me fez bem foi me constatar coelho vermelho; e não só porque vestia casaco vermelho no dia (a prova são as imagens feitas pela fotógrafa Lenise Pinheiro, do blog Cacilda – eu sou aquela do lado do Weber). Nem porque, ali, em cena, peguei a cenoura. Devo lhes dizer que, em meu dia-a-dia, tenho preferido alcançar a cenoura a aceitar morrer de fome. Mesmo que meu ato desafie alguma pseudo-ordem instituída, mesmo que a punição não venha apenas da “autoridade” em questão, mas de congêneres incomodados.
Ser ou não ser um coelho vermelho, Maria Fernanda? Pois é, esta é a questão. Eu já fiz minha opção…
* Se o “poeta é um fingidor”, como dizia Fernando Pessoa, o narrador e o ator também o são… 🙂
WHITE RABBIT, RED RABBIT. Até 14/6, quintas e sextas 20h30, exceto dia 30/5 (feriado), 18h. A cada apresentação, um ator diferente. Sesc Vila Mariana – Auditório: Rua Pelotas, 141, Metrô Paraíso, tel. 5080-3000. Ingressos: R$ 4 (trabalhador no comércio ou de serviço matriculado) a R$ 16. Crédito: Diner, Mastercard, Visa. Débito: Cheque Eletrônico, Maestro, Redeshop, Visa Electron. Onde comprar: no Sesc Vila Mariana (ter. a sex. 9h/21h30, sáb 10h/21h30, dom. e fer. 10h/18h30) e nas demais unidades do Sesc.