As instigantes maravilhas do Mundo Perfeito

Os navegantes da nau Mundo Maravilha: Tiago Rodrigues, Cláudia Gaiolas, Alex Cassal, Stella Rabello, Paula Diogo (em pé), Felipe Rocha e Renato Linhares. (Foto: Magda Bizarro)

Os navegantes da nau Mundo Maravilha: Tiago Rodrigues, Cláudia Gaiolas, Alex Cassal, Stella Rabello, Paula Diogo (em pé), Felipe Rocha e Renato Linhares. (Foto: Magda Bizarro)

Foi uma grata, gratíssima surpresa conhecer o trabalho da companhia portuguesa Mundo Perfeito, que aportou por essas bandas para participar da Ocupação Mirada, programa do Sesc São Paulo voltado ao intercâmbio com a produção teatral de países ibero-americanos. Tive a oportunidade de assistir a dois espetáculos: o delicioso Mundo Maravilha, realizado em parceria com o grupo brasileiro Foguete Maravilha, e o instigante e provocador Se uma Janela se Abrisse. Infelizmente, não pude ver Peça Romântica para Teatro Fechado, que igualmente integra a programação. O ator e diretor artístico Tiago Rodrigues e sua trupe ainda mostrarão mais uma peça: Três Dedos Abaixo do Joelho, de 9 a 11 de agosto. Registro aqui meu desejo de que a nau do Mundo Perfeito volte a visitar esse lado do Atlântico em breve e traga novas e antigas criações.

O mundo que a companhia desvela não é perfeito – nele há tormentas, naufrágios, caos, lapsos e descompassos. Mas trata-se de um mundo repleto de possibilidades, de novos continentes a desbravar, de silêncios que semeiam outras palavras e ideias, de sentimentos em constante recriação. Um mundo em processo contínuo, imperfeito, mas “perfeito” para se habitar justamente por suas imperfeições. Os artistas da trupe têm consciência disso e ousam experimentar. Existe o risco de que, vez ou outra, fiquem à deriva, com algum projeto que ainda não encontrou sua forma ideal, seu tempo de maturação; mas a recompensa pela ousadia é a construção de um modo de fazer teatro cheio de frescor e inteligência – como comprovaram as duas peças a que assisti.

Uma das inquietações que move a companhia, a meu ver, é um trabalho constante com a linguagem teatral e igualmente com a linguagem como (precário, fascinante) instrumento de comunicação. Quanto de nós cabe no idioma que falamos? Quanto da existência humana cabe no teatro? Tiago Rodrigues opta por uma construção conjunta da dramaturgia, na qual as referências do ator são de alguma maneira incorporadas ao que se narra. E deixa as engrenagens do espetáculo à vista, como se o espectador também participasse de seu “sentido final”. Aquilo que ocorre no palco não está fechado e só se completa porque nós lhe estamos assistindo – e qual público não se encanta com essa inclusão?

Criação conjunta entre a cia. portuguesa Mundo Perfeito e a brasileira Foguete Maravilha, "Mundo Maravilha" é um espetáculo sobre a tentativa de criar uma peça. (Foto: Magda Bizarro)

Criação conjunta entre a cia. portuguesa Mundo Perfeito e a brasileira Foguete Maravilha, “Mundo Maravilha” é um espetáculo sobre a tentativa de criar uma peça. (Foto: Magda Bizarro)

MUNDO MARAVILHA

Espetáculo de colaboração artística entre a Mundo Perfeito e a companhia carioca Foguete Maravilha, Mundo Maravilha narra a saga da tentativa de fazer uma peça. O processo criativo se iguala a uma viagem de veleiro em travessia pelo Oceano Atlântico. Durante o período no mar, os sete atores – Tiago, Paula, Cláudia, Alex, Felipe, Renato e Stella – pretendiam partilhar ideias, escrever e ensaiar cenas. Tal e qual o processo criativo, o veleiro muitas vezes parecia não sair do lugar ou perder o rumo; mas sempre alcançava algum ponto novo, ainda não explorado. A embarcação zarpou do cais, lançou-se ao mar, mas depois de algumas semanas, naufragou. “Morreram todos”, nos informam. O que significa essa morte simbólica dentro do processo criativo? E quem “morreu” – os atores, os personagens ou os personagens dos personagens?

Com base no que sobrou da experiência artística, os náufragos – ou seja, os que não morreram (quem não morreu durante o processo criativo, quem sobreviveu?) – tentam retomar aquilo que ficou a salvo: há desde objetos a sentimentos, registros de memórias, falas e diálogos, momentos, passagens de cena. E então, a segunda parte da peça (nova travessia, desta vez em terra firme e assumidamente metafórica?), se inicia com a reconstrução da aventura com base naqueles elementos (abstratos e concretos) que restaram ou que foram recuperados. Trata-se de um momento belíssimo, em que as sutilezas e as vivências de um processo colaborativo vêm à tona, e com tratamento cênico e olhar distanciado, revividos pelos personagens de seus atores, seus “eles-que-são-outros”. Há instantes de uma delicadeza incrível, como a história do japonês e sua orquídea rara – me perdoem a imprecisão, se houver, escrevo de memória –, a jornada do isqueiro vermelho, o monólogo de Tiago, o relato de Paula e a espécie de seresta-declaração de amizade que lhe fazem etc. Gosto igualmente da cena em que os navegantes se transformam em astronautas e se perdem pelo espaço: a delícia de percorrer o infinito, o acaso, a epifania da criação – o instante em que tudo se inicia, big bang!

>> Impasses e lampejos

Trata-se de uma peça sobre a oscilação entre a fé e a dúvida, o acerto e o erro, o impasse e os lampejos, oscilação esta que caracteriza uma criação conjunta. O que se deixa, o que se carrega. O que fica, o que precisa ir. Os afetos que emergem, aqueles que permanecem, os outros que se esvaem. As grandes sacadas, os pequeninos e doloridos acertos. Nada mítico – tudo muito humano, laborioso. O frescor se revela na linguagem, que passeia por registros de vários gêneros teatrais sem se ater a nenhum, e nos experimentos de construção cênica. O cenário se mostra adequado: pufes de cor clara espalhados pelo espaço e reorganizados conforme convém; potes de água, com lampadinhas, que escorregam do teto/céu; e, depois do naufrágio, os objetos que foram recuperados. Isso basta para que façamos todos, atores-personagens e espectadores, uma grande viagem juntos. Os coloridos figurinos, que incluem galochas, estão em harmonia com a proposta.

Nessa viagem marítima e artística, há também lugar para a jornada particular dos navegantes-atores, para as vivências de cada um deles, pois a dramaturgia coletiva tanto absorve quanto preserva a trajetória individual. Todos têm a oportunidade de nominar sua experiência criativa, de dar-lhe forma e encaixá-la numa metáfora condizente: podem ser a estátua de gelo em que se transformou Alex, o “momento Titanic” de Renato e Cláudia, a “expulsão” de Stella por ter rompido a fantasia e por aí vai.

Apenas 125 centímetros separam o público do palco: separam mesmo ou são interstício? Mundo Maravilha tenta ressignificar aquela pequena separação. Todos afundamos juntos – ninguém está imune ao equívoco, à ansiedade, à imaturidade, à profusão caótica de vontades e ao empecilho das limitações. Mas somos engolidos pelo oceano de possibilidades; morremos em certo sentido para reviver em outro nesse eterno aprendizado do existir. Criar não é justamente isso: um morrer para o renascer, como náufragos que chegam à ilha desconhecida, como astronautas que caem em novos planetas?

Aliás, o espetáculo me recordou duas obras queridas do escritor José Saramago: Jangada de Pedra (1986), quando a Península Ibérica se desgruda da Europa e navega à deriva pelo Atlântico, e O Conto da Ilha Desconhecida (1998), sobre a jornada simbólica de cada ser humano pelos mares de dentro e de fora de si mesmo. A peça e as obras evocam um sentimento muito típico dos portugueses que nós, brasileiros, herdamos: a necessidade intrínseca de nos lançarmos ao mar.

Co-criação e interpretação: Alex Cassal, Cláudia Gaiolas, Felipe Rocha, Paula Diogo, Renato Linhares, Stella Rabello e Tiago Rodrigues. Texto de Alex Cassal, Felipe Rocha e Tiago Rodrigues.

(No próximo post, comentários sobre Se uma Janela se Abrisse.)