No princípio, era a palavra

*Da esq. para a dir., o moleiro (Thiago Andreuccetti), o lavrador (Cláudio Queiroz) e a mulher (Eloísa Elena). (crédito: João Caldas)

Há algumas semanas, assisti à reestreia de Faca nas Galinhas, da Barracão Cultural. Trata-se de uma peça com a qual a gente convive por dias, digerindo aos pouquinhos. O texto do escocês David Harrower tem várias camadas de sentido e uma tessitura polifônica, o que o torna fascinante. A montagem dirigida por Francisco Medeiros tira proveito dessas características, e o resultado é um espetáculo de intenso lirismo.

O tempo e o lugar são indefinidos, mas nos remetem a um passado distante e à zona rural de um povoado conservador e tradicionalista. Ali estão um vigoroso lavrador (Cláudio Queiroz), que vive para sua plantação e para seus cavalos, e sua mulher (Eloísa Elena), também vigorosa – aliás, foi essa qualidade que fez com que o homem, segundo ele mesmo, a escolhesse como esposa. Para o lavrador, a vida se resume em arar a terra, cuidar dos cavalos, cumprir as tarefas domésticas (a relação do casal se inclui entre elas) e participar dos eventos da comunidade. Seu mundo tem o tamanho de seu conhecimento empírico e de seus passos. Não sente necessidade de saber mais do que já sabe. A mulher, por sua vez, permite que seus pensamentos voem longe. Elucubra, questiona, indaga, aventa – a princípio, com ingenuidade, dada sua conformidade ao papel social que lhe coube. Pouco a pouco, sua pequenina ousadia vai ganhando força. Até conhecer o moleiro (Thiago Andreuccetti).

Numa sociedade fechada e avessa às mudanças, a presença de um estranho ou de um outsider provoca incômodo e rechaço. Pairam sobre o moleiro histórias escabrosas, os piores adjetivos e uma grande desconfiança. Ele é um homem que lê, que escreve, um homem cujo conhecimento ultrapassa as fronteiras daquela comunidade, daqueles campos. Certo dia, cabe à mulher levar os grãos da colheita para transformá-los em farinha. A princípio, reticente e espinhosa, ela, por fim, cede à curiosidade. Escuta o que o moleiro tem a dizer. Não, ele não é um monstro. Ele lhe apresenta o papel e a tinta, ele lhe ensina a escrever. Ali, ao lado do moleiro, ela se apropria das palavras e de seus vários sentidos. Enquanto um mundo novo se revela, a brutalidade e a ignorância de seu marido e daquela vila se tornam evidentes. Seu casamento vira uma prisão.

Tudo é tão metafórico quanto literal na peça, impossível que nos agarremos a uma única possibilidade de leitura. O cenário, formado por um praticável circular de madeira que se transforma segundo a cena pelas mãos dos próprios atores, sugere uma série de lugares, concretos ou simbólicos. Os efeitos sonoros são realizados ao vivo por Eloísa, Cláudio e Thiago, graças à instalação concebida por Dr. Morris e Maurício Mateus. E as soluções cênicas para os momentos emblemáticos – não vou descrevê-los para não tirar a graça – são bem-sucedidas. Faca nas Galinhas faz pensar e faz sentir.

Tu luta, tu lê

Como mencionei acima, fui digerindo a peça aos pouquinhos. O espetáculo me fez recordar um texto de Ana Maria Machado que li há mais de 15 anos, no fim da década de 1990. Certo dia, no ônibus rumo à Cidade Universitária, onde estudava, encontrei num dos assentos um exemplar do Jornal da Cidadania, publicação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), fundado pelo sociólogo Hebert de Souza, o Betinho. Era um jornalzinho gratuito, com reportagens e artigos sobre iniciativas sociais. Havia ali uma crônica da Ana Maria entitulada Tulutatulê. Como fiquei emocionada com aquele texto, meu Deus! Está certo que, naquela época, eu era uma universitária idealista e romântica, cheia de sonhos de mudar o mundo. Mas acreditava com convicção – como ainda acredito – que a leitura e a escrita são instrumentos emancipatórios em vários sentidos.

Pois, depois de anos buscando reler Tulutatulê, finalmente o encontrei timidamente num blog e descobri que tal crônica fazia parte do livro Contracorrente: Conversas sobre leitura e política (Ática, 1999). O texto fala da experiência da escritora com a alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire. Ana Maria conta que fez um curso para aprender a chamada pedagogia do oprimido e conheceu o “o sistema de se trabalhar com palavras ligadas à realidade dos alunos e a importância de, com eles, distinguir natureza e cultura no mundo em volta”. Então, deu aulas para operários numa construção em Copacabana, no Rio de Janeiro. A primeira palavra apresentada aos alunos foi “tijolo”.

E agora reproduzo o texto de Ana Maria: “De repente, um aluno escreveu uma longa palavra esquisita, parecendo palavra mágica: Tu Luta, Tu Lê. Levei um susto. Não só com a emoção de ver como era rápido, como ele era capaz de criar de imediato um uso impessoal e coletivo para o único pronome capaz de escrever no momento… mas também pela ordem que deu ao seu pensamento. Não se trava de ler para poder lutar, como propunha meu coração de vinte anos, mas de lutar para conseguir ler. A leitura era o objetivo, a meta. A luta era só o meio de chegar lá. (…) Nenhum ensaio que eu tenha lido depois, pelos anos afora, deu conta do recado tão bem, explicando como a dominação se utiliza da falta da leitura”.

A primeira palavra que a mulher de Faca nas Galinhas escreve é seu nome. Ao apropriar-se dele e se afirmar como ser-no-mundo, ela experimenta uma autonomia revolucionária. Depois daquela, virão muitas outras palavras. Ideias. Pensamentos. Imagens. Viagens. Vivências.

Não, você não é um campo, mulher (termo que o marido havia usado para descrevê-la). Você é uma cidadã.

*Soluções simples que geram efeitos cênicos bastante potentes; em cena, Eloísa Elena (crédito: João Caldas)

Até 28/4, sáb. 21h e dom. 19h. Tucarena: R. Monte Alegre, 1024 (entrada pela Rua Bartira), Perdizes, tel. 3670-8455. Gênero: Drama. Duração: 80 min. Classificação: 12 anos. Ingressos: R$ 40. Crédito: todos. Onde comprar: no Tuca (ter. a dom. 14h/20h ou até o início das sessões.) ou, com taxa, pelo tel. 4003-1212 e pelo site www.ingressorapido.com.br. Estacionamento: R. Monte Alegre, 835 (R$ 15).