Teatro, essa arte movediça

*Os atores Marcelo Castro, Grace Passô e Gustavo Bones, do Espanca!, encenam texto do argentino Daniel Veronese (crédito: Guto Muniz/ Foco in Cena).

“Coração mistura amores. Tudo cabe”, escreveu Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Ah, e como cabe. Concordo com Rosa, e concordo sempre um pouquinho mais por experimentar essa mistura no cotidiano, à moda de Antoine Doinel (o célebre personagem do cineasta francês François Truffaut). Em meu coração cabe o fascínio pelo teatro e pelo cinema em igual intensidade, mas cada qual produz um encantamento diferente. Sou apaixonada por ambos, tanto no fazer quanto no assistir. Se me obrigassem a escolher entre os dois, talvez eu saísse pela tangente e elegesse a literatura como fim último do meu amor. Mas essa é outra história…

Ri muito durante O Líquido Tátil, com os mineiros do Espanca! e texto do argentino Daniel Veronese. Com seu humor ácido e inteligente, atuações precisas e ótimas sacadas, a peça me divertiu bastante. Os três atores também parecem se divertir em cena – e isso é fator fundamental para criar empatia com o público (às vezes, lamento uma histeria desnecessária que permeia certas montagens, como se os intérpretes precisassem esganiçar para contar sua história; felizmente, não é o caso desta). Simplicidade, sagacidade e competência se unem nesse espetáculo enxuto e repleto de entrelinhas, no qual os personagens questionam a primazia do cinema sobre o teatro e vice-versa.

Traumas & pulsões

A atriz Nina (Grace Passô), outrora uma estrela dos palcos, tem uma relação cheia de arestas e lacunas com o marido Peter (Marcelo Castro), tipo meio bronco e antiquado, ferrenho defensor do teatro. O casal recebe a visita do irmão de Peter, Michael (Gustavo Bones), rapaz um tanto debochado e menos conservador, fã ardoroso da Sétima Arte.  Ele traz um cãozinho de pelúcia para Nina e um xarope para o irmão sisudo, ex-fumante pouco convicto. Com cortes abruptos na narrativa, a peça envereda pelo teatro do absurdo e lida com o lado B daqueles personagens recalcados, seus traumas e pulsões.

O cenário, claustrofóbico e com um quê de precário, expõe propositalmente as fragilidades do fazer teatral. Os personagens jogam com o público durante o tempo todo; sabemos que se trata de uma encenação – e supostamente Nina, Peter e Michael também o sabem. Mas não só isso: eles nos fazem acreditar que há uma segunda encenação em curso dentro daquela encenação original. E se os personagens formos nós?, cheguei a pensar em dado momento. O engenho do texto de Veronese é tal que provoca uma sensação labiríntica (isso me lembrou vagamente seu conterrâneo Júlio Cortázar). O argentino também assina a direção – e seu apuro estético vale ser destacado. A peça tem ritmo, silêncio e tensão em exata medida, elementos bem trabalhados pelos excelentes intérpretes.

O teatro se esgotou?

Um amigo meu, fã incondicional de literatura e cinéfilo incurável, me disse certa vez que o teatro já não lhe despertava nenhuma curiosidade. Para ele, a linguagem teatral se encontrava esgotada e superada diante da maturidade do cinema. Perdera o interesse no que acontecia nos palcos havia anos; os recursos cênicos não lhe instigavam, pareciam agora instrumentos toscos ou meros pastiches diante da estética cinematográfica. Embora eu discorde da essência de sua crítica, reconheço a pertinência de seu questionamento. O que mantém o teatro vivo, aceso, hoje em dia? (Esse tema renderá ainda muitos outros posts, aguardem).

Numa entrevista dada ao periódico argentino Clarín, em 2008, quando indagado se faria cinema, Veronese respondeu: “La verdad, le tengo un poco de miedo al artificio cinematográfico, toda esa técnica al servicio de un producto que no se puede mover, salvo en la edición, tan distinto al teatro”. E continuou: “Pero es un desafío y creo que si me pongo, no saldría del cine con facilidad, siento que me atraparía. El problema es que estoy excedido en mi trabajo, me seduce lo que hago y no sé parar.”

De fato, o fazer teatral parece areia movediça ou duna, que se move o tempo todo. Um líquido tátil. O jogo-ritual que caracteriza uma encenação está repleto de riscos, sempre sujeito a tudo – a falhas, a interrupções, a esquecimentos, a ruídos, as espirros e a sussurros, mas também a grandes acertos, a momentos de transcendência e epifania. Cada apresentação é única e “irrepetível” – e essa linha tênue entre o fugaz e o memorável, ao menos para mim, é extremamente sedutora.

O Líquido Tátil, ao escancarar a precariedade do teatro de modo explícito, revela muito de sua força. Povoa nossa mente de imagens e dialoga com nossas emoções apostando nos recursos mais simples e mais essenciais: um texto vivo, atores afinados, direção consciente e um cenário sugestivo. Ora, ora, camarada – o resto é com a gente.

* O absurdo permeia "O Líquido Tátil", uma peça que expõe a fragilidade e também a força do teatro (crédito: Guto Muniz/ Foco in Cena).

Até 28/4, sex. e sáb. 21h, dom. e fer. 19h. Sesc Pompeia: R. Clélia, Gênero: Drama. Duração: 50 min. Classificação: 14 anos. Ingressos:  R$ 4 (trabalhador no comércio ou em serviço matriculado) a R$ 16. Crédito: D/M/V. Débito: C/M/R/V. Onde comprar: na bilheteria (ter. a sáb. 9/21h, dom. e fer. 9/19h) e nas demais unidades do Sesc.