O gesto essencial: a presença cênica (1)

Nas últimas semanas, assisti a três espetáculos internacionais que passaram pela cidade: Hamlet, da companhia estadunidense The Wooster Group; o coreano Ukchuk-Ga (Mãe Coragem), da Project Project ZA, que se apresentou no Sesc Vila Mariana e agora segue para o Festival de Teatro de Curitiba, e o inglês Translunar Paradise, em cartaz no CCBB até 7 de abril. Ainda que com grandes diferenças de linguagem – basta dizer que as apresentações do The Wooster Group contam com uma grande equipe técnica para dar conta das projeções e de todo aparato que está em cena com os atores enquanto o pansori, versão mais contemporânea da tradicional narrativa musical coreana, se resume a uma atriz-cantora, músicos e trabalho de luz –, os três espetáculos me fizeram refletir sobre um pilar do teatro, que geralmente acaba esquecido nas superproduções ou nas peças-cabeça pretensiosas, aquelas com muito discurso, pouco corpo e quase nada de jogo: o gesto essencial.

Uma breve digressão a respeito, despertada talvez pelo reencontro casual com Elisa Oliveira, produtora de Ukchuk-Ga e educadora no Centro Livre de Artes Cênicas, em São Bernardo. Atriz com formação e experiência internacional, Elisa segue a linha do teatro gestual. Viveu na Espanha por uma década e, quando voltou ao Brasil, passou a dar oficinas e cursos. Participei de um deles. Trabalhávamos o corpo, esse contador de histórias, fonte de poesia e imagens, antes de lidar com qualquer ideia, texto ou cena. Lapidávamos o gesto, o movimento, as intenções contidas num abanar de mão ou num ajoelhar-se.  Me lembro bem do dia em que levei um amigo turco, o Bora, que me visitava naquele período, para um dos encontros. Elisa me dizia: “Não precisa traduzir todas as orientações para ele; ao ver o que estamos fazendo, ele entenderá”. Foi uma experiência mágica para o Bora (que nunca havia feito teatro na vida), da qual ele se recorda até hoje. Um dos exercícios era correr até a beira do cais do porto e constatar que o navio, que levava nosso grande amor, acabara de partir. Havíamos perdido a despedida derradeira. Acenávamos – mas… seria em vão aquele aceno? Surgiram cenas lindas e verdadeiras, posto que preenchíamos aquela narrativa com nossas histórias, nossos afetos, nossas motivações. E, principalmente, com nosso corpo.

A cantora JaRam Lee e o percussionista da Pansori Project ZA durante apresentação de "Ukchuk-Ga" (Mãe Coragem)

UKCHUK-GA, Pansori Project ZA

O pansori é uma espécie de contação de histórias musicada, originada da tradição oral na Coreia durante a chamada Dinastia Joseon (ou Choson), que atravessou do século 14 ao 19. Considerado patrimônio cultural imaterial pela Unesco desde 1964 e bastante popular naquele país, o pansori recorre a narrativas geralmente associadas ao período Joseon, muitas com temas rurais ou de conquistas, e é realizado por uma cantora e um percussionista. As apresentações, caracterizadas por uma história dramática cantada, com gestual específico e uma interpretação vívida, podem durar até oito horas.

A Pansori Project ZA trouxe uma versão contemporânea do gênero teatral coreano, com mais músicos e instrumentos em cena. E apresentou uma leitura da obra Mãe Coragem e Seus Filhos (1939), do alemão Bertold Brecht, que conta a sofrida trajetória da mascate Anna, apelidada de “Mãe Coragem”, que perde seus três filhos para a mesma guerra que garante sua sobrevivência econômica. Na apresentação da companhia, Anna é o “nome globalizado” da coreana Sun-Jong Kim, abandonada desde muito jovem por seus companheiros, única responsável por três crianças, que, como forma de sobrevivência, se transforma numa arguta comerciante durante as sangrentas guerras asiáticas.

A sorikkun (vocalista) Ja-Ram Lee escreveu o roteiro e compôs todas as músicas do pungente e emocionante espetáculo. São três horas de entrega, técnica e vigor numa presença cênica fenomenal. Simpática e competente, Ja-Ram segura a atenção da plateia e interpreta quase duas dezenas de personagens, passando de um para outro por meio de inflexões de voz, gestos claros e límpidos e um respirar diferente. Há leveza e verdade em sua atuação. E quase não existe cenário – as cortinas e a bela iluminação se encarregam de criar as atmosferas, acompanhando os três músicos. E só. Para quem acredita que o teatro apenas acontece com a “literalidade” – cenários extraordinários e explicativos, infinidades de objetos em cena, figurinos óbvios e outros penduricalhos inúteis –, vá ver urgentemente o pansori de Ja-Ram & companhia. Está na mostra oficial do Festival de Teatro de Curitiba, realizado na capital paranaense de 26 de março a 7 de abril.