O gesto essencial: artesanato da impermanência (2)

HAMLET, The Wooster Group

A companhia performática, sediada em Nova York e dirigida por Elizabeth LeCompte, trouxe um espetáculo mais cerebral e estético e, talvez por isso, suas quase três horas tenham parecido mais cansativas que as do pansori da vocalista Ja-Ram Lee e dos músicos Hyuck-Joe Jang, Hyang-Ha Lee e Hong-Sik Kim (leia post anterior). Contribuiu para essa sensação a cadência do texto, num inglês rimado e ritmado, não muito fácil de acompanhar numa sessão noturna, depois de um dia de trabalho. Mas a apresentação veio carregada de frescor. E, de novo, ali estava o gesto como motor da narrativa, numa abordagem bastante diferente.

The Wooster Group

Cena de "Hamlet", espetáculo que a companhia The Wooster Group, sediada em Nova York, trouxe para São Paulo. (Crédito: Mihaela Marin))

Não sei se todo aparato tecnológico usado por The Wooster Group – projeções de vídeo, brincadeiras sonoras e outros efeitos de mídia eletrônica – se faz sempre tão necessário, mas integra a proposta experimental do grupo, que se baseia na desconstrução de um texto para sua posterior reconstrução, com uma outra leitura, nada reverente ou engessada, ativando novos sentidos e novas possibilidades cênicas. Os espetáculos da companhia em geral têm esse caráter híbrido, de mistura de teatro com instalação. Parecem processos não finalizados de pesquisa – o que, ao menos para mim, caiu muito bem – nos quais podemos identificar alguns mecanismos intrínsecos ao fazer teatral: a marcação de cena, o estudo de movimento, o uso do espaço etc.

Em Hamlet, o grupo parte de um filme feito com base no registro ao vivo de uma montagem teatral do texto de Shakespeare, realizada em 1964 na Broadway. A produção de Richard Burton foi gravada por 17 câmeras no Lunt-Fontanne Theatre, com o público presente. O objetivo da empreitada era transformar a peça em longa-metragem e levar o teatro ao cinema. Pois bem: The Wooster Group usa, então, fragmentos desse filme para reviver o espetáculo teatral. Num telão, no palco, vemos cenas daquela montagem antológica. Os atores de agora revivem as marcações e os gestos daqueles artistas de 1964. Eles “repetem” o que foi feito só na aparência; usam o desenho cênico prévio, mas o preenchem com outras histórias – as deles, as nossas, as do hoje.

As imagens do telão pairam como sombra e memória sobre a encenação atual. Desafiam a efemeridade. Em muitos momentos, abstraí do texto (a sorte é que se tratava de uma peça canônica) e só me deixei levar pelo jogo ali estabelecido. Os gestos, ah, os gestos: imitados e recriados em tempo real, essenciais naquele agora, mas totalmente fugazes no tempo da história, da vida. E o que é o teatro senão um artesanato da impermanência?

The Wooster Group se apresentou no Sesc Pompeia durante duas semanas em março.